Uma visita guiada ao passado de Nova Iorque através do mundo apocalíptico de Tom Clancy’s: The Division em Operation Jane Walk (2018). Um vídeo-ensaio sobre as inter-relações entre os videojogos e os sonhos em Featherfall (2019), onde o cair infinito para fora do espaço programado da realidade virtual se assemelha ao cair infinito dos pesadelos. Um vídeo-ensaio antiguerra – um tributo à desobediência e aos desertores – pelas paisagens do jogo de tiro Battlefield V em How to Disappear(2020). Um mergulho na realidade dos NPCs (non playable characters, ou personagens não jogáveis) de Red Dead Redemption 2 como crítica ao paradigma capitalista que prende os trabalhadores numa rotina sisífica, sem propósito nem fim à vista, em Hardly Working(2022).
O trabalho do coletivo austríaco é híbrido em todos os sentidos. Numa fusão entre documentário, vídeo-ensaio e animação, os seus projetos dividem-se maioritariamente entre a curta-metragem, a instalação e a performance, mas já por diversas vezes filmes resultaram de instalações ou performance. Os Total Refusal autodefinem-se como “uma guerrilha de media pseudo-marxista focada na intervenção artística e na apropriação de videojogos mainstream”. Fundado em 2018, o grupo conta atualmente com seis membros: Michael Stumpf, Leonhard Müllner, Robin Klengel, Jona Kleinlein, Adrian Haim e Susanna Flock. Os três primeiros foram os fundadores, os três últimos foram-se juntando desde então, e todos se movem por entre as artes visuais e o mundo digital, por entre a filosofia e a política, com um pouco de música e antropologia à parte. Dizem fazer o upcycle (ou uma segunda vida com uma nova função) de videojogos “para revelar o aparato político para lá das texturas brilhantes e hiper-reais desse media”.
O grupo tem-se destacado pela forma original com que explora a curta-metragem, invulgar tanto a nível de forma como de conteúdo. Esta reapropriação – uma técnica conhecida como machinima, termo que resulta da aglutinação de machine (máquina) com cinema – é feita com um quê de ironia, ainda que o tom usado na leitura dos ensaios seja sempre neutro (tirando em Operation Jane Walk, criada ainda com um tom de brincadeira). As suas obras já foram exibidas em vários festivais de cinema de renome, como a Berlinale (Festival Internacional de Cinema de Berlim), o Locarno (Festival Internacional de Cinema de Locarno), o IDFA Amsterdam (Festival Internacional de Cinema Documental de Amsterdão), o Doc Fortnight do MoMA (Festival Internacional de Cinema e Media de Não-Ficção do Museu de Arte Moderna de Nova Iorque) ou a Bienal de Veneza. Com um total de 20 projetos divulgados até ao momento – a maior parte deles disponível no website do coletivo –, o grupo tem já também alguns prémios na bagagem.
Lado a lado com João Gonzalez e Estibaliz Urresola Solaguren, os austríacos fecharam o programa New Voices do Curtas Vila do Conde – Festival Internacional de Cinema. Quatro dos seus filmes – Operation Jane Walk, Featherfall, How to Disappear e Hardly Working – foram exibidos no dia 11 de julho, tendo Michael Stumpf e Susanna Flock protagonizado uma das suas performances – Everyday Daylight – no dia seguinte. Minutos antes da apresentação das curtas-metragens, o Gerador esteve à conversa com o duo de artistas (Michael Stumpf e Susanna Flock, os únicos membros do coletivo que se deslocaram a Portugal este ano) no Teatro Municipal de Vila do Conde.
Para começar, querem introduzir-se, explicar quem são, o que fazem, a vossa abordagem, o vosso trabalho?
Susanna Flock (S. F.) – Nós somos uma guerrilha de media pseudo-marxista que usa a técnica de machinima, o que basicamente significa que trabalhamos com videojogos mainstream. Escolhemos esses grandes nomes, que são bem conhecidos, têm valor de mercado elevado e geram muitas receitas, e analisamo-los, e tentamos sempre fazer o oposto do gameplay esperado – ou seja, nunca os jogamos como é suposto serem jogados. E tentamos pensar como podemos criar histórias diferentes, e não apenas histórias diferentes, mas as nossas próprias histórias. Na maior parte do tempo, produzimos filmes com videojogos, mas também escrevemos ensaios teóricos, fazemos trabalho educativo e workshops, e projetos artísticos como instalações. Mas, maioritariamente, fazemos filmes. E como a indústria dos videojogos gera mais receitas do que da música e do cinema juntas, é mesmo o rosto do capitalismo. Então, no nosso entender, temos de olhar bem para eles, e para toda a ideologia, de forma a criticá-los analiticamente, bem como tentar ver para lá das texturas hiper-reais e brilhantes que os videojogos têm, que são um dos grandes fatores da ilusão e se traduzem no seu cariz de entretenimento.
Como é que criam o conceito para cada filme?
Michael Stumpf (M. S.) – Ah, isso varia muito de projeto para projeto. Quer dizer, em geral, é um vaivém entre escrever e entrar no mundo do jogo. Normalmente não escrevemos guiões – a não ser que estejamos a concorrer para alguma bolsa que exija que se escreva guião. Mas, normalmente, não escrevemos guiões antes de entrarmos a sério no jogo e começarmos a filmar, porque o nosso trabalho também tem essencialmente um caráter documental, e não sabemos bem o que vamos conseguir dali ou o que vai acontecer quando entrarmos no jogo. Então, não faz sentido tentar criar um guião de tudo; habitualmente escrevemos ensaios sobre as questões políticas com as quais queremos lidar e, ao mesmo tempo, jogamos vários jogos, e fazemos observações de como um determinado jogo pode ser uma boa opção para o tema que nos preocupa naquele momento. Assim, o nosso processo é basicamente jogar, fazer observações, descobrir como podemos fazer, por exemplo, uma performance num jogo específico para representar algo sobre o qual escrevemos no ensaio, e é um vai e volta. Reescrevemos o texto, ou adaptamo-lo mais para uma forma cinematográfica – de um ensaio para algo mais próximo de um guião, com diálogo ou o que for preciso. E não é um processo muito linear; até já no fim, mesmo quando estamos na fase da produção já de montagem do filme, é bastante normal para nós ainda revermos textos e acrescentarmos partes novas. É de facto um processo bastante não estruturado.
(S. F.) – Por vezes temos convites muito específicos, perguntam-nos se estaríamos interessados em trabalhar um determinado cenário, um determinado suporte, um determinado tópico, para um festival, ou se conseguiríamos criar algo nesse sentido. E então, claro, às vezes também acontece de surgirem ideias a partir de convites.
(M. S.) – Certo.
(S. F.) – E aí já se entra num certo jogo ou se pensa em certos temas de uma determinada maneira e é como se isso desencadeasse toda uma sequência de eventos do nada.
Como é que tudo isto começou? Como é que nasceu a ideia de criar o coletivo, como é que escolheram machinima como técnica, como é que escolheram o ângulo?
(S. F.) – Nós somos apenas dois representantes de seis pessoas. Na verdade, tudo começou com duas pessoas que não estão cá, que são o Leonhard [Müllner] e o Robin [Klengel]. E tudo começou de uma forma muito livre e mais com uma perspetiva humorística. Porque eles andavam a jogar muitos videojogos – todos nós somos gamers até certo ponto – e andavam a divertir-se muito a jogar fora das linhas dos jogos. E a certa altura eles jogaram Tom Clancy's: The Division e perceberam o quão bem Nova Iorque está retratada nesse jogo de tiro. E como vários de nós, especialmente o Leonhard, somos grandes entusiastas de arquitetura, surgiu essa ideia: porque não fazer uma ferramenta de arquitetura dentro do videojogo, ou tornar o jogo numa ferramenta arquitetónica? Quer dizer, a formação do Leon também é artística, ele estudou Belas-Artes, e o Robin é antropólogo cultural, mas ele sempre foi também... como é que se diz?
(M. S.) – Artista freelancer.
(S. F.) – Freelancer, sim. E então este foi o primeiro projeto, que na verdade deveria ser uma performance, não um filme. E a performance durou mais de uma hora, acho eu.
(M. S.) – Sim. E, a sério, o filme não foi concebido como um filme, é apenas a gravação da performance, e dá para ver pelo trabalho de câmara e tudo o resto que é simplesmente a gravação de uma performance. E eles na altura enviaram para alguns festivais, e no momento eu acho que foi mais uma experiência, eles na verdade não esperavam que nada acontecesse.
(S. F.) – Tenho a ideia de que eles sempre disseram… há um festival de cinema na Áustria, a Viennale, e por pior que seja o filme, se for enviado para competição, eles dão sempre credenciais aos realizadores. Então, a ideia era apenas conseguir acesso gratuito ao festival para assistir a todos os outros filmes. Mas do nada as pessoas gostaram do corte da performance, e de repente eles passaram a ser cineastas. E eu acho que esse eco que, principalmente do mundo do cinema, veio daí… como se diz?
(M. S.) – O que queres dizer? Conjeturou?
(S. F.) – Sim. Desde então, ficou essa ideia de ‘uau, cineastas’. E, entretanto, começou-se com o projeto do que veio a ser o How to Disappear, e o Michael...
(M. S.) – Não, primeiro houve... ou melhor, depois do Operation Jane Walk, primeiro houve a exposição em Zagreb.
(S. F.) – Ah, pois é!
(M. S.) – Por algum motivo, os Total Refusal foram convidados. E foi nesse ponto que eu me juntei.
(S. F.) – Ah, foi através da residência.
(M. S.) – Sim. Então, houve essa proposta para se fazer uma exposição a solo, embora naquele momento o único grande projeto que existia fosse o Operation Jane Walk, esse primeiro filme que a Susie esteve agora a descrever. E só tínhamos alguns dias, então basicamente no espaço de uma semana fizemos três pequenos projetos extra, e criamos um nome, e um logotipo, e toda a existência dos Total Refusal enquanto coletivo. Apenas para esta exposição específica. E então nós meio que... tudo aconteceu muito rápido a partir daí. O nosso segundo filme, o How to Disappear, já foi produzido de forma muito mais consciente como filme, com trabalho de câmara a sério e tudo o resto, e estreou na Berlinale. Então meio que tudo surgiu do nada, no nosso caso.
(S. F.) – Sim. E depois, com o início da pandemia... quer dizer, o coletivo já estava a despertar bastante interesse, e já estavam a surgir muitas possibilidades, e estava a começar a ser demasiado para uma equipa de três pessoas conseguir gerir. E eu andei na escola com o Robin e o Leon, conhecemo-nos desde os 15 anos, logo, como éramos mesmo muito amigos, e como o meu trabalho artístico em contexto académico também estava a ser com videojogos, porque não entrar no coletivo? E depois também abrimos para o Jona [Kleinlein] e o Adrian [Haim]. O Jona também tem os seus próprios projetos com jogos.
(M. S.) – Na verdade, ele é o único homem da área a sério.
(S. F.) – Sim, ele tem formação em cinema, em realização e trabalho de câmara. Ele na altura vivia na Noruega, mas começou a relacionar-se com o coletivo através de jogos, e então a amizade também começou por jogarem juntos. E o Adrian, a área dele é a da ciência política, e ele fez parte de uma revista que publica uma coluna sobre jogos...
(M. S.) – Para a qual nós escrevemos.
(S. F.) – Para a qual os Total Refusal escreveram. E começou essa amizade próxima, embora ele também esteja muito ligado ao tema, e tenha sempre trabalhado de alguma forma ligado, não só à divulgação, mas também ao cinema. E ele também foi convidado a juntar-se, então agora somos seis. Desculpa, esta foi uma história muito longa.
(M. S.) – Essa foi uma resposta muito elaborada, foi.
(S. F.) – Sim.
Sem problema. E foi uma história interessante.
(M. S.) – Mas acho que foi principalmente uma questão de... acho que estávamos no lugar certo à hora certa. Porque a arte de jogos era… quer dizer, ainda é, mas mesmo em comparação com agora, era extremamente de nicho nas artes, porque os jogos não eram um tópico atraente para o setor de artes altamente estetizado, pelo menos quando se trata da arte mainstream. E acho que é também agora que toda a cena artística, ou toda a cultura em torno de, está de certa forma a acordar para os jogos como algo para lá do estigma.
Como é que tem sido a receção? Sei que têm recebido uma certa atenção, mas também há um certo grau inicial de estranheza. O vosso trabalho é de facto uma coisa tão única, uma combinação tão invulgar de algo tão mainstream com um pensamento tão intelectual, e essa fusão é o que o torna tão interessante, mas também pode criar alguma confusão, certo?
(S. F.) – Sim, a resposta tem sido super diversificada. Quer dizer, o eco criado está ligado a cada área, certo? Não sei bem como responder, porque há muita variedade.
(M. S.) – Sim. Eu acho que depende do público. Quando exibimos em festivais de cinema, grande parte do público fica principalmente surpreso, talvez por causa de um certo grau de desconhecimento do meio dos jogos, logo, eles ficam meio… nem é apenas o nosso trabalho que os surpreende, é como se todo esse confronto ou esta questão os surpreendesse, ou pelo menos esta forma de serem confrontados com jogo. Mas das pessoas que estão mais interessadas nisto – ou interessadas no suporte ou são mesmo jogadoras – recebemos muitas reações a dizer que o trabalho lhes abriu os olhos para o que se pode fazer com jogos, ou como também se pode usar jogos, o que é, obviamente, algo gratificante de se ouvir. E também temos tido, ainda que em muito menor quantidade, alguns comentários, até de criadores e programadores de jogos, que têm debatido os nossos filmes, o que também é, claro, sempre bom de se ouvir. É claro que ficamos felizes quando vemos que podemos sair da bolha do cinema e fazer com que os nossos filmes sejam vistos pelos jogadores também.
(S. F.) – No início, a receção foi mais forte no setor de festivais de cinema, no circuito das curtas-metragens, e tivemos imenso apoio e isso ajudou o coletivo – pelo menos a acreditarmos em nós próprios e a percebermos que talvez possamos mesmo fazer estas coisas. E, agora, acho que até o mundo da arte está mais interessado, há mais oportunidades, festivais de arte media. E fazemos workshops, então tentamos também chegar a públicos mais jovens e ensiná-los a fazer machinima e esse tipo de coisas.
(M. S.) – Dito isto, ainda não estamos muito satisfeitos com o quão ativos somos na comunicação, por exemplo, com o mundo dos jogos. Isso é algo que queremos fazer, especialmente porque queremos ter no nosso trabalho algum contacto entre a nossa política ou ideologia e a atual cena dos jogos fora da bolha artística, mas não estamos a conseguir arranjar tempo para comunicar ativamente com plataformas de jogos e coisas assim, então isso é algo em que ainda queremos trabalhar... mas eu tenho dito isto em todas as entrevistas desde que entrei para o coletivo.
Vocês também têm outros tipos de projetos.
(S. F.) – Sim, é divertido não apenas passar filmes, mas também fazer performances. Por exemplo, amanhã temos uma performance, e é muito engraçado porque há uma margem enorme para imprevistos, porque nunca sabemos o que vai acontecer, até se acontece algo como o servidor não funcionar ou nos expulsar, ou alguma coisa dar bug. Há tanta coisa sempre a acontecer, mas é muito divertido – pelo menos na minha perspetiva, assistir alguém a jogar ao vivo, mas a fazer uma performance ao mesmo tempo, a parte da palestra, é muito divertido, sim. E isso é algo que na verdade esperamos poder fazer com mais frequência.
(M. S.) – É divertido fazer performances, é. Nós até temos um programa de culinária. Temos um programa de culinária marxista, só o apresentamos uma vez até agora, mas esperamos poder fazê-lo novamente. Fizemos isso em Locarno no ano passado. Basicamente temos quatro de nós a cozinhar num simulador de culinária...
(S. F.) – Que é um simulador muito foleiro.
(M. S.) – Sim, é… quer dizer...
(S. F.) – É foleiro.
(M. S.) – Não, é estranho, é. É feito para ser difícil de controlar, é aí que está a diversão. Mas então nós temos uma pessoa que está de facto a cozinhar, fisicamente, ao vivo no palco, e eu estou a moderar tudo como se fosse uma competição de culinária e todos estivessem no mesmo meio. Porque, hoje em dia, os programas de culinária na televisão costumam seguir um formato de competição, e usamos esse tópico para contar a história de como os programas de culinária evoluíram desde o pós-guerra, e também usamos o exemplo de programas de culinária para contar a história sobre como o capitalismo evoluiu.
(S. F.) – Mas com um foco especial no sector dos serviços, na forma como o sector dos serviços se desenvolveu e como está hoje a situação das pessoas que trabalham no sector dos serviços. Mas enquanto isso estamos a cozinhar, e no final o público tem direito a jantar, mas também tem de votar em quem fez o melhor...
(M. S.) – Prato, sim. Então, sim, isso é divertido de fazer. Já mencionamos workshops e projetos educacionais. E também temos alguns projetos de instalação. Por exemplo, fizemos parte do Graz 2020, que é um programa cultural da cidade de Graz [na Áustria], onde afundamos uma tela de projeção no rio Mur e depois projetamos nela uma paisagem alterada pelas mudanças climáticas.
(S. F.) – Acho que está a acabar o nosso tempo.
(M. S.) – Sim, porque temos de ir apresentar aos nossos filmes daqui a cinco minutos.
Sim, estão à vossa espera lá em baixo.
(M. S.) – Tens uma última pergunta?
Vocês combinam sempre – tanto em formato de filme como em instalação e performance – jogos com ensaios?
(S. F.) – Não necessariamente, mas sim. Mas é engraçado, o texto é dominante, eu diria, mas, por exemplo, a nossa última instalação, Club Stahlbad, era apenas uma imitação de uma discoteca, e temos esses quatro NPCs que estão a dançar, e a certo ponto eles começam a ter problemas e meio que a dissolver-se, e nós escrevemos a música, então é tudo muito atmosférico, e tentamos ser o mais poéticos possível sem termos texto a sério. Então, às vezes não usamos texto.
(M. S.) – Sim. Nesse caso, tentámos simular a disfuncionalidade de espaços que deveriam proporcionar êxtase e entretenimento, e onde esse entretenimento é tão fortemente ritualizado que acaba por não funcionar para as pessoas. Acho que toda a gente que já esteve numa discoteca conhece o sentimento. E esse projeto funciona sem nenhuma narrativa ou texto.