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Estibaliz Urresola Solaguren: “O que não tem nome não existe”

20 000 Espécies de Abelhas, a primeira longa-metragem de ficção de Estibaliz Urresola Solaguren, teve a sua estreia mundial em fevereiro na Berlinale, festival onde foi candidato ao Urso de Ouro e a mais cinco categorias (das quais venceu três, incluindo a de melhor protagonista para Sofía Otero, que com 9 anos se tornou a pessoa mais nova a ganhar o prémio). Depois de ter estado no Curtas Vila do Conde em 2022, a cineasta regressou ao Festival Internacional de Cinema no início de julho para apresentar o novo filme, escolhido para abrir o festival antes de chegar ao circuito comercial no dia 20 do mesmo mês.

Texto de Redação

Estibaliz Urresola Solaguren | ©Sofia Matos Silva

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A vida de Ekai Lersundi acabou abruptamente a 15 de fevereiro de 2018. Depois de anos de luta e de ativismo, anos de esforço para se enquadrar num sistema que nunca se esforçou por o enquadrar, anos a ver os pedidos de tratamento hormonal negados ao mesmo tempo que a sua própria biologia o transformava no oposto do que sentia, o rapaz de 16 anos natural do País Basco decidiu que não conseguia continuar. Para trás, deixou uma nota repleta de pedidos de mudança, súplicas para que outros não tivessem de passar pelo que passou, e apelos cheios da única coisa que já não tinha para si próprio: esperança.

A morte de Ekai pôs em marcha uma pequena revolução em Espanha e, com mais ênfase, no País Basco. As histórias das crianças e adolescentes trans começaram a ser ouvidas, e a sua realidade por fim chegou à opinião pública. Estibaliz Urresola Solaguren foi uma das pessoas que se comoveu com a história do jovem basco; poderia ser apenas mais uma no meio de milhares, se não tivesse escolhido dedicar anos da sua vida a explorar as histórias das crianças trans. Entrou em contacto com a Naizen (Asociación de Familias de Menores Transexuales), uma associação basca que presta apoio a famílias com crianças e jovens trans. Durante um ano, entrevistou crianças trans e os seus familiares, acompanhando o seu dia a dia, as suas dificuldades e as suas conquistas. O resultado deste longo processo de pesquisa? 20 000 Espécies de Abelhas.

O filme é apenas a primeira longa-metragem de ficção da realizadora, mas 20 000 Especies de Abejas (o título original deste filme que chegou às salas este ano) é precedido por quatro curtas-metragens – Adri (2012), Nor Nori Nork (2018), Polvo Somos (2020) e Cuerdas (2022), bem como um segmento de uma curta documental, 1001 Formas de Tomar Café (2013) – e uma longa-metragem documental, Voces de Papel (2016). Nascida em Bilbao em 1984, a realizadora conta também com um impressionante currículo académico: duas licenciaturas, a primeira em Comunicação Audiovisual pela Universidade do País Basco e a segunda em Teoria de Edição pela Escola Internacional de Cinema e Televisão de Cuba, e dois mestrados, um em Direção Cinematográfica e o outro em Indústria Cinematográfica (um currículo que engloba marketing, distribuição e vendas), ambos pela Escola de Cinema e Audiovisual da Catalunha.

O Curtas Vila do Conde apresenta a obra da cineasta como inscrita na tradição de “explorar tensões coletivas, sobretudo familiares, exclusivamente a partir de personagens femininas em diferentes estádios da vida”. Em Adri, uma jovem nadadora confronta-se com as transformações típicas da adolescência e com a incompreensão que essas transformações geram, aliada à ausência da mãe e ao afastamento cada vez maior do pai. Polvo Somos explora as flutuações das relações familiares durante o processo do luto, colocando lado a lado quatro mulheres da mesma família (a personagem principal e a sua irmã, bem como a mãe e a avó materna de ambas) aquando o funeral do avô. Já Cuerdas aventura-se para fora do meio familiar, acompanhando um coro feminino na difícil decisão de aceitar ou não um subsídio que permitirá ao grupo sobreviver mais um ano, quando o subsídio vem da petrolífera responsável pela poluição que tem, aos poucos, vindo a matar filhos, netos e amigos. “Em todas estas curtas”, refere ainda o dossier de imprensa do Curtas, “a voz das mulheres assume um papel fundamental enquanto meio de expressão e presença no mundo, abalado por eventos existenciais decisivos e transformadores”.

Cuerdas, de Estibaliz Urresola Solaguren

20 000 Espécies de Abelhas “propõe-se a ir mais além de uma atmosfera marcadamente feminina ao abordar metaforicamente as complexidades da identidade de género. A figura da criança regressa ao centro da narrativa com o sofrimento de Aitor, cujo nome de nascença e alcunha, Cocó, não correspondem à identidade que questiona e procura. As abelhas, enquanto símbolos da biodiversidade natural, surgem como metonímia para a diversidade identitária”. Lucía – o nome mais tarde escolhido por esta menina – pergunta-se porque é que os outros sabem quem são e ela não, e porque é que todos parecem saber quem ela é, quando nem ela própria o sabe. A mãe tenta apoiá-la como pode, bem como uma tia-avó (representada por Ane Gabarain) que se torna na sua maior aliada; porém, as opiniões constantes dos elementos da família alargada só a deixam mais confusa e frustrada.

A narrativa acompanha Lucía no seu processo de autodescoberta, à medida que procura também acompanhar a família como um todo – embora com maior ênfase na figura da mãe, interpretada por Patricia López Arnaiz – à medida que esta atravessa fronteiras físicas (entre o País Basco francês e espanhol) e metafóricas. As figuras masculinas estão em grande parte ausentes do filme, caindo o grande destaque, como seria de esperar, em Sofía Otero, que com 9 anos se tornou a pessoa mais nova a ganhar o Urso de Prata para Melhor Interpretação Principal. O guião foi construído ao longo de quatro anos, processo que se iniciou no fatídico ano de 2018 e se prolongou à medida que a realizadora ia reunindo apoio de laboratórios, incubadoras e produtoras para o projeto. A conquista do Rails d’Or na Semana da Crítica em Cannes para Cuerdas teve o seu peso, bem como a seleção para os Script 2 Film Workshops do Instituto de Cinema do Mediterrâneo (MFI) em 2021 e para o Co-Production Market da Berlinale em 2022.

Cuerdas também esteve em competição no Curtas Vila do Conde em 2022, logo após ter entrado para a seleção oficial do Festival de Cannes. Este ano, a cineasta ocupou um lugar de honra no festival vilacondense, tendo sido convidada a integrar o júri das competições nacional e internacional, a exibir o seu filme (já vencedor em Berlin, Málaga, Hong Kong, Seattle e Guadalajara) na abertura do festival, a projetar as suas curtas-metragens e a conversar com o público, estas duas últimas sessões integradas no programa New Voices. Foi no final da conversa aberta ao público – que decorreu no dia 10 de julho no Teatro Municipal de Vila do Conde – que o Gerador se sentou para conversar com a realizadora.

Cartaz de 20 000 Espécies de Abelhas | ©Sofia Matos Silva

Em primeiro lugar, para quem ainda não te conhece muito bem em Portugal, como apresentarias o teu trabalho até agora?

Eu estou sempre a tentar refletir e representar a tensão entre o individual e o coletivo. E, ainda, como essa tensão resulta em quem somos, essa negociação constante entre o mundo interior, a experiência interior que é íntima, com o mundo exterior, as relações com os outros, seja na família, seja no grupo de amigos, seja em relação à sociedade. Também me interessa muito retratar personagens femininas que sejam reais, mais reais do que aquilo que me fui habituando a ver no cinema. Isto porque quando estava a estudar cinema sentia muito a falta de personagens femininas reais, personagens complexas, personagens que realmente me dissessem algo, personagens com que me pudesse relacionar. E, de uma forma muito intuitiva e quase inconsciente, estou sempre à procura dessas personagens quando estou a escrever os meus guiões. Então, corpo, género, identidade, o confronto entre o individual e o coletivo, são temas que continuam a passar, de uma maneira ou de outra, por todos os meus trabalhos.

Qual foi a inspiração, ou o ponto de partida, para 20 000 Espécies de Abelhas?

Foi um acontecimento muito triste: o suicídio de um rapaz trans de 16 anos, no País Basco. Isso foi em 2018, e sinto que as coisas mudaram até certo ponto desde então, porque em 2018 havia muito pouca informação sobre as infâncias trans nos media. E também na sociedade, não havia sequer a possibilidade de se falar sobre isso, porque não era conhecido, ou sua existência não era reconhecida. É tal como escrevi no filme, o que não tem nome não existe. Se na opinião pública este assunto não é reconhecido como um assunto, é impossível estar-se consciente, informado, e sabermos acompanhar os nossos filhos se eles estiverem nesta situação. Então, esse acontecimento, o suicídio que o Ekai cometeu em 2018, foi o ponto de partida para um despertar coletivo. Porque teve realmente um efeito enorme nos media; começaram a aparecer famílias a passar por estes processos em programas, nos jornais, a contar as suas experiências e a dar a conhecer às pessoas. E foi o ponto de partida de um processo que ainda está a decorrer, e que ainda tem de estar a decorrer, mas que, de certa forma, já deu alguns frutos, no que diz respeito às leis e às mudanças oficiais para estas crianças e estes jovens. Quando isto aconteceu em 2018, entrei em contacto com a associação das famílias que passam por esse processo – ou melhor, que acompanham o processo dos filhos –, e iniciei a fase de documentação. Entrevistei muitas destas famílias com crianças trans entre os 4 e os 10 anos. Acho que é o que mais marca ou choca a sociedade, o quão novos eles já sabem quem são.

Quando a Sofía Otero ganhou o Urso de Prata e o filme chegou aos órgãos de comunicação social portugueses, a conversa à volta do filme ficou muito presa nisso. A primeira reação que muitas pessoas têm é, ‘ela é muito nova, não pode saber isso ainda’. E isto é antes de verem o filme, porque ainda não estava nos cinemas, é só a partir da sinopse.

Exato! Se, em vez disso, uma menina de 8 anos disser que é uma menina, ninguém tem nada a dizer sobre isso. Mas quando temos uma menina trans a dizer que é uma menina, toda a gente vai logo dizer, ‘não, ela não sabe, ela não pode saber quem é porque é demasiado nova’. Isso é um pressuposto de consciência, um pressuposto sobre o que significa ser mulher. Se fosse algo que fosse possível toda a sociedade saber o que significa... Eu acho que ser mulher não significa nada, ou significa tudo ao mesmo tempo. Porque ser mulher não é uma experiência fechada, uma experiência hermética, é algo que também tem a ver com tudo o resto, é afetada ou condicionada pela forma como as pessoas são criadas, pelo estatuto económico, pela classe social, logo, não é como se existisse uma experiência universal do que é ser mulher. Portanto, é por isso que eu também queria reunir todas estas personagens no filme, estas diferentes personagens femininas que pudessem deixar um pequeno sinal ou testemunho de diferentes maneiras de experienciar a vida enquanto mulher.

É como a frase da Simone de Beauvoir, “não nascemos mulheres, tornamo-nos mulheres”.

Acho que esse foi o meu ponto de partida – talvez estivesse mais familiarizada com essa abordagem ao género. Porém, essa abordagem, de alguma forma, entra em crise quando encaro estes miúdos, tão jovens, já sabendo – mesmo que ainda não tenham a capacidade de falar muito bem ou a linguagem para o dizer – quem são e explicitamente a tentarem ser compreendidos pelos outros. Quer dizer, eu conheci muitas famílias que têm crianças de 3 ou 4 anos que ainda não eram capazes de falar bem, mas eram capazes de se declarar no género que sentem. E isso é algo anterior à linguagem, anterior ao simbólico e à representação. Então, essa é uma das coisas que mais me prendeu, porque é uma pergunta que também nos oferece novas perguntas: mas de onde vem a identidade? É realmente algo que construímos, que nos tornamos, ou há uma parte pelo menos nesse sentir que pertence à nossa intimidade, e isso é algo que sabemos desde o início? Não sei. Não tenho respostas, mas queria pelo menos fazer novas perguntas com o filme.

20 000 Espécies de Abelhas, de Estibaliz Urresola Solaguren

Esta é a tua primeira longa-metragem de ficção. Como foi a transição entre a forma curta e a longa?

Foi muito natural, no meu caso. As minhas duas curtas-metragens anteriores são bastante longas, têm à volta de 30 minutos cada. Quando comecei a escrever sobre as 20 000 Espécies de Abelhas, sendo o tema complexo como é, o filme pedia-me para continuar em diante, para avançar em direção a uma narrativa longa, onde pudesse retratar de forma mais detalhada todas as personagens e os principais conflitos entre elas. É verdade que esses dois trabalhos anteriores me ajudaram a ter a confiança da indústria. Com um deles, com o Polvo Somos, fui candidata aos Prémios Goya, e depois o Cuerdas estreou na Semana da Crítica em Cannes. Então, acho que isso também ajudou um pouco a finalmente convencer o resto dos elementos de que precisávamos para avançar com o projeto. Mas as principais produtoras estiveram lá quase desde o início, então foi muito bom para mim ter sido bem acompanhada ao longo do percurso.

Estavas a falar sobre linguagem, como as crianças podem saber antes de saber, ou sentir antes de saber, ou saber antes de conseguirem dizer o que sabem. Como se consegue traduzir esse conflito interno num formato visual?

Sim, é difícil. Acompanhar a personagem principal e vivenciar com ela esses espaços e essas situações, que se podem tornar tão agressivas e tão violentas para uma pessoa que sente que não se encaixa no normativo – e há situações que adultos que não viveram nem nunca contactaram com esse conflito não conseguem ver o quão violento aquilo pode ser para uma criança trans, não é? Como, por exemplo, normalizamos o facto de os espaços públicos separarem e segregarem completamente por géneros, a frequência com que somos nomeados pelos outros, a frequência com que as pessoas apontam o que os outros devem fazer, corrigem como os outros devem agir, ou o simples facto de as pessoas estarem o tempo o todo a falar sobre as pessoas trans e a julgar as pessoas trans. A cena no filme, por exemplo, com o cartão para ter acesso à piscina, como esse momento se pode tornar tão violento para uma pessoa trans – e ainda mais para uma criança. Então, eu estava a tentar acompanhá-la a passar por todas essas situações, para que de alguma forma possamos reconhecer o sentimento e o ponto de vista de uma pessoa que tem de lidar constantemente, no seu dia a dia, com todos esses momentos em que a estão a questionar o tempo todo. Não estava a tentar colocar grande foco no corpo, ou nos órgãos genitais, por exemplo, porque acho que o sentido de identidade não tem nada a ver especificamente, ou necessariamente, com o corpo ou com os órgãos genitais. É algo diferente, que talvez venha de um lugar que até podemos não entender, mas que temos de respeitar.

Estibaliz Urresola Solaguren | ©Sofia Matos Silva

Escolheste abordar esta história a partir de vários pontos de vista. Isso é importante para ti?

Sim. Uma das coisas que mais me marcou nesse período de recolha de informações e de entrevistas foi ouvir muitas das famílias a dizer que passar por esse processo transformou a família toda de uma forma positiva. Porque perceberam que as dinâmicas dentro da família não eram de relações de qualidade, em que as pessoas realmente se ouçam umas às outras, em que haja um verdadeiro cuidado e preocupação com o que o outro sente ou está a passar por. Em vez disso, eram relações de sobrevivência, dinâmicas de focar em seguir em frente e ignorar tudo o resto. Mas, ao serem forçadas a enfrentar este momento, os pais dessas famílias sentem que se inicia um verdadeiro processo de comunicação, não só com os filhos trans, mas também consigo próprios, individualmente e entre o casal, e também com o resto dos filhos, os irmãos ou as irmãs. E isto é tanto em geral como sobre o que se estava a passar em específico, como é que isso estava a afetar as relações familiares, ou até perguntando-se individualmente também de onde vinham, em que sistema de géneros foram criados e de que forma isso tinha vindo a afetar as suas próprias experiências de vida. Então, iniciou-se uma grande transformação que afetou toda a família. E esse é um ponto de vista que eu acho que tem bastante valor, porque quando vemos filmes sobre pessoas trans, são quase sempre narrativas que sublinham o conflito, o estigma, o sofrimento, mas não tanto as oportunidades que esse processo individual pode trazer para o coletivo, seja o coletivo a família ou a sociedade. Em 2018, eu senti que essa mensagem era tão chocante, ou tão nova, tão forte, que me fez querer abordar essa ideia através do filme. E é por isso que evito fazer uma narrativa de ponto de vista único, ou um filme impulsionado apenas por uma personagem, porque eu queria falar sobre transição, mas essa transição não é apenas a da Lucía, mas sim a transição de toda a família, e como essas relações se transformam, embora principalmente sintetizadas na relação entre a Lucía e a mãe.

Também escolheste incluir diferentes gerações, precisamente para mostrar como as coisas podem evoluir ao longo do tempo.

Sim. E também porque eu também estava sempre a perguntar-me: o que significa ser mulher? Porque, como eu estava a dizer há pouco, eu acho que não significa nada ou que significa tudo, logo, reunir diferentes gerações de mulheres também pode permitir falar sobre o que significa ser mulher, ou o que significava no passado, e como o tempo em que elas cresceram moldou as suas experiências de vida, ou como toda a resignação e toda a frustração que vem de não terem tido a possibilidade de viver as suas vidas na sua plenitude, com liberdade – ou pelo menos com tanta liberdade como os homens viveram as suas vidas – as afetou. Porque eu acho que os homens também estão de certa forma presos às regras do sistema de géneros, mas é verdade que sempre tiveram muito mais liberdade para experimentar e para se moverem por diferentes esferas da vida, liberdade que as mulheres nunca tiveram. Todas essas frustrações e toda essa dor são o resultado desse processo, desse sistema, que ainda está em funcionamento no presente para essa idosa, também, na forma como se relaciona com os outros. Então, sim, para mim, esse processo que a personagem da Lúcia inicia nesta família é algo que faz explodir toda a herança destas relações históricas entre todas estas mulheres, e proporciona-lhes a oportunidade de recomeçarem, de se repensarem a si próprias e umas às outras, e de tentarem ver-se e valorizar-se com um novo olhar.

20 000 Espécies de Abelhas, de Estibaliz Urresola Solaguren

Como surgiram as abelhas, ou a metáfora das abelhas?

As abelhas surgiram, primeiro, quando descobri algumas canções populares bascas, muito antigas e anónimas, que diziam que sempre que um pai ou uma mãe de família estava a morrer, isso tinha de ser dito às abelhas – e, para além disso, quando nascia um bebé na família, isso também tinha de ser comunicado às abelhas. Então, essa relação com as abelhas é algo que me marcou bastante. As abelhas eram vistas como animais sagrados. Isto também difere da relação que temos com as abelhas hoje em dia; temos principalmente medo delas, temos medo porque achamos que são um risco para as nossas vidas, e por isso atacamo-las. E eu penso que esta é apenas mais uma na longa lista de coisas que nos são desconhecidas, ou que não conhecemos o suficiente, e esse desconhecimento provoca a rejeição. Mas, depois, quando nos aproximamos, quando começamos a perceber como se comportam, como comunicam, como organizam a comunidade inteira, como são fortes o suficiente para voar tantos quilómetros, começamos finalmente a poder chegar a um ponto de admiração, a poder apreciar o valor de diversidade que as abelhas trazem à vida no mundo. Quer dizer, é algo que num primeiro momento nos pode provocar algum receio, mas quando nos aproximamos, fazemos um esforço por entender e reconhecer e ver para lá de, é uma possibilidade para aprender muita coisa. As abelhas são ainda um animal importante para a diversidade, toda a diversidade de flora no mundo existe em grande parte graças às abelhas. E este é, similarmente, um filme sobre diversidade, e tudo isso fez-me pensar em vários significados e símbolos que podia usar no filme.

Os críticos europeus consideram-te uma das cineastas envolvidas na criação de uma nova escola de cinema feminino espanhol. Como é que isto aconteceu? Por acidente, pura coincidência, ou foi intencional?

Não acho que esteja a acontecer por acidente ou por acaso. Acho que está a acontecer como resultado de muitas outras coisas que estão a acontecer. Uma delas poderia ser o apoio oficial para garantir que somos incluídas nos fundos e nas bolsas, por exemplo. Porque isso significa que podemos finalmente compreender que, se não fôssemos incluídas, não era porque não tínhamos capacidade, mas por causa da disfuncionalidade social, que é uma realidade que também existe em muitas outras áreas, mas que também operou em força no cinema. Logo, para tentar corrigir essa disfuncionalidade, essas medidas eram necessárias, e eu acho que o que está a acontecer é evidência dos resultados a médio e longo prazo que estes tipos de medidas têm. Outro impulsionador são os laboratórios, laboratórios de desenvolvimento que se tornaram como uma ponte entre os estudos académicos e o primeiro trabalho, e que eu acho que permitem e encorajam os estudantes a dar esse primeiro grande passo. Porque é o passo mais difícil de todos, não? Terminar os estudos e acreditar que tens a capacidade para ser alguém ou...

Fazer alguma coisa.

Fazer alguma coisa, que tens a capacidade para fazer alguma coisa, ou alcançar alguma coisa. Também são imensas as profissionais mulheres que têm aparecido nas áreas mais técnicas, que são áreas onde os homens têm sido os principais protagonistas até agora, e essas mulheres estão a fazer com que todo o ecossistema mude. Quantas mais mulheres realizadoras tiverem existido, mais mulheres sentem que há a possibilidade de se reconhecerem nelas. E essa ausência até agora é uma das principais razões – porque quando se está a estudar cinema, não se consegue encontrar mulheres, é procurar a única no meio de centenas de realizadores homens, e isso torna muito difícil conseguirmos projetar-nos nesse espelho. Então, acho que quantas mais mulheres cineastas existirem, mais mulheres cineastas vão existir.

Sentes que conseguiste honrar a memória do Ekai, ou pelo menos o seu apelo à esperança e à mudança?

Eu conversei com os pais dele, e eles sentiram-se muito comovidos e emocionados, porque saber que tudo isto existe – o filme e o debate maior à volta das crianças trans – por causa da tragédia que aconteceu na família deles dá-lhes, por muito pequena que seja, uma certa sensação de que a decisão dele teve algum significado. Duvido que algum filme possa honrar uma perda como esta, ou fazer ‘valer a pena’. Mas os pais do Ekai têm sido muito gentis e generosos comigo nas suas palavras e eu espero… eu espero que sim, que tenha conseguido de alguma maneira honrar a sua memória. Mas, é como eu digo, nunca será algo equivalente, nunca um filme poderá colocar-se no lugar de um filho.

Estibaliz Urresola Solaguren | ©Sofia Matos Silva

Entrevista por Sofia Matos Silva

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