Conta a pequena história que na cidade de Ischia, perto de Nápoles, um grupo de foliões que vinham bem “avançados” de uma aventura alcoólica passada num bar da moda, se abeirou já fora de horas do restaurante Rancio Felonni (aqui diríamos “navalheira”) que pertencia ao Sr. Sandro Petti, exigindo comer.
Petti não os podia mandar embora – eram seus amigos e gente importante – mas já pouco tinha para lhes dar àquela hora da noite.
Sobravam-lhe alguns tomates, alcaparras, uma lata de anchovas e azeitonas. Com esses ingredientes inventou um molho que deitou por cima de um “spaghetti al dente” acabado de fazer também por ele.
Estava criado o “spaghetti alla puttanesca”, cuja simplicidade de execução e agrado geral, para quem não desdenha os sabores fortes, o tornou quase de imediato um sucesso naquele restaurante e em muitos outros pelo mundo fora.
Por que motivo ganhou o prato este título, uma vez que não parece estar na sua génese o envolvimento de alguma senhora da nobre profissão em causa?
Continuando com a lenda, parece que o que se passou naquela noite para batizar o prato foi um fenómeno linguístico de proximidade.
O grupo de beberrões quando defrontado com a falta de materiais no restaurante terá dito ao cozinheiro e proprietário faz-nos “puttanata qualsiasi”, o que em italiano de rua será mais ou menos parecido com a frase portuguesa bem afiada “desenrasca para aí qualquer m****”.
O Sr. Petti não gostou do som da palavra “puttanata” e achou melhor usar na sua ementa a palavra “puttanesca”.
Estava criado o mito.
Em nossa casa este prato é sempre uma opção barata, rápida e destinada ao êxito da pandilha. Por isso recomendo que, em havendo quatro criaturas presas no recato do lar, façam este prato como se fosse para seis. Porque com a travessa à frente vale sempre o velho ditado: “comer e coçar o pior é começar”.
Ingredientes: 4 tomates, 3 dentes de alho, 1,2 decilitros de azeite extra virgem, salsa, orégãos, pimentos vermelhos picantes (ou malagueta esmagada), 50g alcaparras, sal, 100g azeitonas pretas sem caroço, 600g de spaghetti de trigo duro, um frasco de 100g de anchovas de boa qualidade.
Como fazer: Refogamos o alho no azeite e quando estiver dourado juntamos as alcaparras, as azeitonas sem caroço, os tomates cortados em cubos e sem pele, os pimentos vermelhos sem as pevides e os orégãos a gosto.
Em estando cozinhado juntamos a salsa picada e as anchovas lavadas e esmagadas, deixamos apurar e corrigimos o sal.
Entretanto fez-se o “spaghetti al dente”, sete ou oito minutos, e deita-se este molho por cima, mexendo bem. Guardem alguma da água de cozer o spaghetti para acrescentar ao molho.
Serve-se de imediato.
O que se deve beber com esta receita tem de equilibrar o ácido das anchovas com o picante dos pimentos. Esquecemos os vinhos tintos com corpo e frutos pretos. Querem-se tintos mais leves e novos, ou então vinhos brancos. Se forem aos sites especializados internacionais verão que a casta “Viognier” é recomendada para os vinhos brancos, bem como a casta Shiraz para os tintos.
Mas estamos em Portugal e a crise pede iconoclastia. Sai um belo Rosé? Um Douro Redoma de 2017, com 13º e a custar menos de 10 euros.
Depois de assim comer e beber tão bem, regressa a esperança:
(…)Saber que ainda há florestas,
sinos, palavras; que a terra
prossegue seu giro, e o tempo
não murchou; não nos diluímos.
Chupar o gosto do dia!
Clara manhã, obrigado,
o essencial é viver!
(Carlos Drummond de Andrade)
-Sobre Manuel Luar-
Manuel Luar é o pseudónimo de alguém que nasceu em Lisboa, a 31 de agosto de 1955, tendo concluído a Licenciatura em Organização e Gestão de Empresas, no ISCTE, em 1976. Foi Professor Auxiliar Convidado do ISCTE em Métodos Quantitativos de Gestão, entre 1977 e 2006. Colaborou em Mestrados, Pós-Graduações e Programas de Doutoramento no ISCTE e no IST. É diretor de Edições (livros) e de Emissões (selos) dos CTT, desde 1991, administrador executivo da Fundação Portuguesa das Comunicações em representação do Instituidor CTT e foi Chairman da Associação Mundial para o Desenvolvimento da Filatelia (ONU) desde 2006 e até 2012. A gastronomia e cozinha tradicional portuguesa são um dos seus interesses. Editou centenas de selos postais sobre a Gastronomia de Portugal e ainda 11 livros bilingues escritos pelos maiores especialistas nesses assuntos. São mais de 2000 páginas e de 57 000 volumes vendidos, onde se divulgou por todo o mundo a arte da Gastronomia Portuguesa. Publica crónicas de crítica gastronómica e comentários relativos a estes temas no Gerador. Fez parte do corpo de júri da AHRESP – Associação de Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal – para selecionar os Prémios do Ano e colabora ativamente com a Federação das Confrarias Gastronómicas de Portugal para a organização do Dia Nacional da Gastronomia Portuguesa, desde a sua criação. É Comendador da Ordem de Mérito da República Italiana.