No sábado, dia 11 de novembro, levantei-me cedo para marchar. Estava sol, o céu turquesa e aberto, algo relativamente invulgar para um dia de outono em Londres. Mas um dilúvio pouca diferença faria: umas semanas antes, sob mantos de chuva assídua, éramos quase meio milhão. Uma comunidade com propósito. Por coincidência ou infortúnio (ou?), a maior parte das linhas de metro da cidade estavam suspensas pela manhã – trabalhos programados na sinalização. Mas a intermissão do transporte, ainda que inoportuna, pouca diferença faria: há sempre o comboio, o autocarro, há quem faça a distância a pé. Keffiyehs em espirais nos pescoços de muitos, o tecido multicolor dobrado sobre si mesmo como um amparo, bandeiras de verde, branco, vermelho e preto ao punho e às costas, em cartazes e no ar. Marchei do meio-dia às cinco da tarde com cerca de 800,000 pessoas: famílias inteiras, idosos, crianças às cavalitas e de megafone aos lábios, a liderar os hinos pela justiça e libertação. Pessoas que se arrastavam em muletas, uma perna em gesso; pessoas a distribuir biscoitos caseiros a estranhos; pessoas a cantar, e a chorar. Por vezes, via-me rodeada de tanta gente que era impossível dar um passo em frente durante vários minutos, e por isso uma distância que seria habitualmente percorrida em cerca de uma hora só o seria em mais de quatro. Assim se media a solidariedade com a luta digna do povo palestino: expansiva, difusa no tempo e no espaço, inquebrável, mesmo perante a tentativa.
Pedíamos um cessar-fogo humanitário na Palestina e o fim do prolongado genocídio levado a cabo pelo governo Israelita em Gaza, reivindicações longe de serem particularmente radicais ou ambiciosas. Pedíamos que se acabasse com o sofrimento exorbitante dos palestinos, que resistem a décadas de apartheid, de ocupação colonial, de privação, de expropriação, de hipervigilância, de tortura, de morte, de colapso, e são vítimas de uma comunidade internacional que os difama e abandona num poço sem fundo. Suplicávamos aos nossos representantes e éramos silenciados.
Se é bonita e se agiganta, a solidariedade, como é sanguinário e irredimível, o Império. Como é cruel e inconsequente, a repressão. Nos dias anteriores à marcha, Suella Braverman, a ex-Secretária de Estado da Administração Interna do Reino Unido, chamou às marchas de solidariedade “marchas de ódio” e sugeriu que as forças policiais eram tendenciosas na forma lidavam com manifestações políticas, sendo particularmente lenientes com manifestantes pró-Palestina, de esquerda ou pertencentes a grupos minoritários, e desproporcionalmente agressivos com grupos nacionalistas, de extrema-direita ou até adeptos de futebol. A marcha de dia 11 de novembro iria coincidir com as celebrações do Dia do Armistício, motivo de apreensão para as autoridades britânicas, que nos seus ensaios para reprimir uma manifestação política em nome da paz omitiam um facto essencial: que a palavra “armistício” significa, precisamente, a cessação das hostilidades em tempo de guerra. O comité de organização da marcha pela libertação Palestina garantiu, por mais de uma vez, que as duas celebrações jamais se cruzariam. Mas o mal estava semeado, bastava a faísca. Na manhã de sábado, grupos de militantes da extrema-direita, incitados pelas palavras de Braverman, invadiram o Cenotaph, um memorial às vítimas da I Guerra Mundial, proclamando a sua intenção de autodefesa contra ativistas pró-Palestina e “islâmicos” radicais que ameaçavam a integridade nacional do Reino Unido. Os confrontos com agentes policiais levaram a centenas de detidos; nenhum deles teria participado na marcha de solidariedade com o povo palestino, que decorreu tranquilamente.
Suella Braverman não elegeu as suas palavras por lapso ou inocência. Apelida a solidariedade de destrutiva, incontrolável e preenchida de ressentimento e desprezo bárbaro porque compreende o papel do seu discurso na produção e enviesamento da realidade. É esta a principal ferramenta que os donos do Ocidente – aqueles que se autointitulam ‘civilizados’, os agentes da moralidade e da boa consciência – utilizam para aclamar os seus interesses vitais: a apropriação total da linguagem, a subversão de todo o seu sentido. Fazem-no de uma forma tão profunda que as palavras – “ódio”, “genocídio”, “guerra”, “ataque”, “terrorista” – tornam-se conchas ocas, sem peso ou valor.
É verdade, claro, que os conceitos nos falham. “Violência” não serve para descrever o que vive o povo palestino. A desumanização é tão funda e não pode ser tocada por nenhum som. Mas “solidariedade” sempre me agradou, sempre me pareceu a palavra certa. Solidariedade, diferente de caridade: estável e robusta e bonita. O seu significado não pode ser adulterado; está nas ruas.
-Sobre Miriam Sabjaly-
Miriam Sabjaly é jurista. Trabalhou como técnica de apoio a pessoas migrantes vítimas de crime em Portugal e a pessoas vítimas de crimes específicos, como os crimes de ódio, tráfico de seres humanos, discriminação, mutilação genital feminina e casamento forçado. Foi assessora da Deputada não inscrita Joacine Katar Moreira entre março de 2021 e março de 2022. Atualmente é mestranda em Direitos Humanos, dividindo o tempo entre Gotemburgo (Suécia), Bilbao (Espanha), Londres (Reino Unido) e Tromsø (Noruega).