Muitas e muitos de nós estamos ainda a recuperar de um resultado tão expressivo quanto assustador de um partido de extrema direita. Dir-se-á que o regime não está em causa, que as instituições aguentam, que até poderia ter sido pior, que foi só um protesto fugaz. Mas estas pequenas compensações não me desviam do essencial: em Portugal, e um pouco por todo o mundo, milhões de pessoas votam em programas políticos que penalizam os migrantes, os negros, os ciganos, as mulheres; programas que propõem a via da prisão ou da morte (física ou social) para punir os pobres; propostas que dividem o mundo entre eles, os “pedófilos e corruptos” e nós, “as pessoas de bem”; cartilhas que exibem a majestade da força e da violência, no altar de uma imaginária masculinidade recuperada.
Com a inquietação a atormentar-me, digo: é preciso compreender e (re)agir. Ser radical passa por aqui – ir à raiz, perscrutar a complexidade das causas e dos motivos, rejeitando qualquer visão unidimensional (quer a ideia da catástrofe irreprimível, quer o otimismo progressista de um caminho inelutável para um devir aperfeiçoado). Compreender significa resgatar a possibilidade de intervir a tempo. Compreender, em suma, para agir melhor e transformar a condição presente, através da sua crítica. Com este argumento deixamos de condenar um só ato de ódio, de exclusão ou de perseguição? Não – jamais. Mas não basta a indignação, como não ajuda a resignação burguesa de um apocalipse que se anuncia e que a todos esmagará.
Desde logo, as desigualdades. Medram e com elas a vulnerabilidade e um profundo sentimento de injustiça, desconfiança e medo. Medo da desclassificação social, das trajetórias erráticas, de ficarmos piores, de assistirmos à quebra do mito de que os filhos vão ter um futuro melhor do que os pais, redimindo-os. É neste caldo que a irracionalidade encontra o seu alvo, o desânimo, cavalgando-o numa desconfiança larvar face “ao sistema”, doravante uma espécie de magma viscoso e indistinto.
Mas também a excitação da dimensão cultural e simbólica no contexto histórico nacional: acenda-se o fogo adormecido nos estereótipos de um passado colonial ou do “esplendor de Portugal”, o facho imaginário que ressuscita magicamente o morto, isto é, o passado dos “egrégios avós” de antanho.
Acrescente-se a difusão em rede da mentira, o desejo mimético de agradar e de pronunciar até à exaustão as mentiras que toda a gente adora veicular e teremos o ingrediente da dúvida permanente, a erosão de qualquer básica sólida para argumentar e tentar estabelecer um consenso mínimo sequer sobre as “regras do jogo” (como se viu nos recentes debates presidenciais).
Some-se, ainda, a tentação do eco, de fazer como eles, de responder na mesma medida, com a mesma vozearia, num crescendo de espetáculo que apenas reforça a repetição incessante dos formatos ou molduras do discurso de ódio, que esmaga qualquer contradição ou complexidade. Ou então o juízo elitista, de condenação moral dos “bárbaros”, “incultos e desinformados”, a “ralé” iletrada, a turba ululante que desconhece as regras do cosmopolitismo.
Outras causas poderão ser elencadas. Escrevo ao sabor das notas, como quem desabafa hipóteses. Proponho, pois, o trabalho crítico de exame e a suspensão metódica da dor que nos atravessa e, às vezes, pela paralisia ou pela fuga, nos impede de pensar. Pensar. Pensar com os outros, em conjunto: a mais revolucionária das tarefas.
-Sobre João Teixeira Lopes-
Licenciado em Sociologia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto (1992), é Mestre em ciências sociais pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (1995) com a Dissertação Tristes Escolas – Um Estudo sobre Práticas Culturais Estudantis no Espaço Escolar Urbano (Porto, Edições Afrontamento,1997). É também doutorado em Sociologia da Cultura e da Educação (1999) com a Dissertação (A Cidade e a Cultura – Um Estudo sobre Práticas Culturais Urbanas (Porto,Edições Afrontamento, 2000). Foi programador de Porto Capital Europeia da Cultura 2001, enquanto responsável pela área do envolvimento da população e membro da equipa inicial que redigiu o projeto de candidatura apresentado ao Conselho da Europa. Tem 23 livros publicados (sozinho ou em co-autoria) nos domínios da sociologia da cultura, cidade, juventude e educação, bem como museologia e estudos territoriais. Foi distinguido, a 29 de maio de 2014, com o galardão “Chevalier des Palmes Académiques” pelo Governo francês. Coordena, desde maio de 2020, o Instituto de Sociologia da Universidade do Porto.