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Cosmolocalismo

Nas Gargantas Soltas de hoje, Jorge Pinto fala-nos sobre outra forma económica para a sociedade.

Opinião de Jorge Pinto

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Na década de 1960, após visitar países como a Birmânia, o economista E.F. Schumacher desenvolvia a sua ideia de “tecnologias intermédias”. O autor, que se tornaria famoso pelo seu seminal “Small is beautiful”, defendia que em economias mais pobres e sem os meios necessários para adquirir tecnologia de alto custo, as comunidades locais poderiam codesenvolver a sua própria tecnologia. Pelo seu carácter potencialmente injurioso ou dúbio, o termo acabaria por evoluir para “tecnologias apropriadas”, podendo as suas características principais ser agrupadas em quatro pontos:

  1. Tecnologias de simples utilização, de simples manutenção e reparação;
  2. Tecnologias e ferramentas intensivas em trabalho, por oposição a intensivas em capital ou energia;
  3. Construídas com recurso a materiais locais e adaptadas às realidades no terreno;
  4. Tecnologias e ferramentas com o menor impacto possível no meio ambiente em que se inserem.

O foco das tecnologias apropriadas estava, portanto, maioritariamente nas economias mais pobres, integrado numa visão de desenvolvimento local. Numa linha semelhante, Ivan Illich defendia a promoção das ferramentas conviviais. Era relevante não apenas o aspeto técnico, isto é, a concretização e utilização das próprias ferramentas, mas também a promoção da autonomia daqueles – e daquelas – que se serviriam das mesmas. Esta ideia de promoção da autonomia era central na defesa de Illich das ferramentas conviviais como pilar da sua visão de uma sociedade convivial e, numa definição bastante lata, afirma que as ferramentas conviviais são “todos os dispositivos projetados racionalmente, sejam artefactos ou regras, códigos ou operadores”. 

Na esteira dos conceitos de Schumacher e Illich, um discípulo deste último, Wolfgang Sachs, definiu nos inícios dos anos 1990 um novo conceito que tem vindo a ganhar relevância: cosmolocalismo (ou localismo cosmopolita). Não rejeitando as suas implicações ideológicas, o cosmolocalismo desafia a visão capitalista da globalização e da economia tal como esta tem sido aplicada. Em particular, aqueles que tentam desenvolver o conceito e práticas comolocalista estão contra a homogeneização, não apenas das tecnologias e das ferramentas em si, mas também – e talvez sobretudo – contra a homogeneização das culturas, fomentada pela globalização tal como promovida pelo capitalismo do final do século XX e do século XXI. 

“Desenha global, constrói local” é o mote que descreve o cosmolocalismo e que tem uma forte componente digital. Efetivamente, é da partilha que se constrói este movimento que junta engenheiros e agricultores, economistas e filósofos, europeus e africanos, entre outros. Com uma forte componente digital e informática, os princípios dos bens comuns digitais e do código aberto são uns dos pilares do cosmolocalismo tal como ele é entendido no presente. É com base nesses princípios que a partilha se faz, livre de custos, permitindo que haja uma melhoria e/ou adaptação de cada ferramenta às realidades locais. Uma construção de baixo para cima, da base local, com as suas especificidades, até uma base global, construída não a partir de um único local, mas antes constituindo-se graças às diferenças e realidades de cada geografia, numa espécie de internacional do faça-você-mesmo. 

Mas, em termos práticos, o que esperar do cosmolocalismo? Pegando num dos exemplos onde estas ferramentas são mais úteis e onde estão mais desenvolvidas, no setor da agricultura, podemos ter uma comunidade numa área remota da Grécia onde cientistas e agricultores desenvolvem e fabricam as suas próprias máquinas. Os códigos necessários para a sua construção,  manutenção e melhoria, abertos e livres de patentes, são realizados em parceria com outras pessoas e coletivos em locais como a Estónia, os Estados Unidos da América ou Espanha, sempre com plena transparência e sem custo, assegurando-se, graças a essa transparência, a melhoria contínua dos produtos. Não se pense, no entanto, que o cosmolocalismo, como foi o caso dos princípios que o antecederam, se foca apenas em tecnologias “intermédias” ou de simples utilização; pelo contrário, foi graças a esse princípio que já se lançou um satélite para órbita e que se desenvolveu o código para a construção de uma mão biónica

O cosmolocalismo insere-se assim numa visão da sociedade e da economia em linha com os princípios do decrescimento e da defesa, utilização e promoção dos bens comuns. Mais, pelo seu foco na invenção e na tecnologia, este princípio permite dar resposta às críticas muitas vezes feitas ao movimento decrescentista, de que este seria anti conhecimento e anti progresso. Assim, os promotores do cosmolocalismo não rejeitam a importância da tecnologia na melhoria das condições de vida dos seres humanos, no combate às desigualdades entre países e dentro de um mesmo país, e no esforço de saída da situação de insustentabilidade ecológica na qual nos encontramos. Em paralelo, o cosmolocalismo não alinha tampouco no discurso tecnotimista, presente igualmente entre alguns movimentos ambientalistas, que afirma que a tecnologia, por si só, sem qualquer política social ou económica, dará resposta a todos esses problemas. 

Aliando tecnologia, autonomia, partilha, bens comuns, conhecimento das realidades locais e ligação entre o mundo rural e urbano, bem como a preservação do ambiente no qual se insere, o cosmolocalismo pode e deve fazer parte de uma estratégia de globalização justa e co-construída a partir de várias latitudes e longitudes. 

-Sobre Jorge Pinto-

Jorge Pinto é formado em Engenharia do Ambiente (FEUP, 2010) e doutor em Filosofia Social e Política (Universidade do Minho, 2020). A nível académico, é o autor do livro A Liberdade dos Futuros - Ecorrepublicanismo para o século XXI (Tinta da China, 2021) e co-autor do livro Rendimento Básico Incondicional: Uma Defesa da Liberdade (Edições 70, 2019; vencedor do Prémio Ensaio de Filosofia 2019 da Sociedade Portuguesa de Filosofia). É co-autor das bandas desenhadas Amadeo (Saída de Emergência, 2018; Plano Nacional de Leitura), Liberdade Incondicional 2049 (Green European Journal, 2019) e Tempo (no prelo). Escreveu ainda o livro Tamem digo (Officina Noctua, 2022). Em 2014, foi um dos co-fundadores do partido LIVRE.

Texto de Jorge Pinto
Fotografia de Luís Catarino
*As posições expressas pelas pessoas que escrevem as colunas de opinião são apenas da sua própria responsabilidade.*

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