O meu filho João, que começou aos 14 anos o estudo para ser adolescente em pleno grau, tem cada vez com mais frequência partilhado comigo como, tanto o Chat GPT como outras aplicações de inteligência artificial, têm gradualmente invadido o dia-a-dia dos alunos da sua escola, ocupando de forma mais intensa o lugar que a Wikipédia tem vindo a conquistar no “apoio” ao estudo. Esta, com o acesso cada vez maior dos alunos à internet a todo o momento, veio alterar de forma irreversível o processo de aprendizagem.
A Wikipédia não é mais que um acesso facilitado à informação, com uma fonte mais ou menos universal, fixa na forma e de fácil acesso, tanto para professores como alunos. Se, por um lado, é uma ótima ferramenta de pesquisa, por outro fixa-se num formato pré-determinado e nem sempre compatível com uma solicitação de um trabalho. Já o Chat GPT ou qualquer outra ferramenta de IA do género, fornece outro tipo de “serviço de pesquisa” aos alunos. Fornece interpretação, correlação de informações e até reflexão sobre os temas pedidos. Na verdade, fornece quase tudo o que é normalmente exigido por um professor num determinado trabalho. A ideia de resposta “copy-paste” limitada da Wikipédia cai por terra com o Chat GPT, capaz de gerar o texto pedido pelo professor, mesmo no estilo de um aluno de uma determinada idade. Com o Chat GPT por perto e acessível, os alunos são, hoje, capazes de resolver quase todos os desafios que lhe são habitualmente colocados pelos professores.
Sabendo nós disto, pais, professores, educadores em geral, qual poderá ser o caminho?
Retirar o acesso aos instrumentos de pesquisa parece-me, à partida, uma decisão errada. Não só porque me parece improvável que deixem de poder ser acedidos, mas principalmente porque estes instrumentos tenderão a ser ubíquos e a sua utilização fundamental no futuro. Restam-nos duas hipóteses. A primeira é saber viver com eles. Pensar que caminho seguir, o que investigar e que perguntas fazer é fundamental para que cada um saiba orientar uma pesquisa. Adaptar a forma e os conteúdos para que se valorize a sua aprendizagem e repensar a avaliação para que se consiga aferir essa aprendizagem. Mas esta primeira hipótese é, quanto a mim, um penso rápido, uma solução que mantém a estrutura e lhe “resolve” temporariamente um problema.
O que me leva à segunda hipótese, que passa necessariamente por uma reestruturação radical da ideia de ensino e, consequentemente, de aprendizagem.
Neste novo mundo, em que num clique tudo é pesquisável e a informação nos chega já interpretada e correlacionada, não é a aprendizagem da informação que é importante e, por isso, a valorização do conhecimento “decorado” perde relevância. O que resta então?
Alguns aspetos que, apesar de terem vindo a encontrar espaço no ensino, precisam de o conquistar de uma forma quase total. Destes, destaco três: a criatividade, a curiosidade e a empatia.
A criatividade, inspirada e alimentada por um consumo orientado e enquadrado de arte e cultura, que permite desenvolver o pensamento indireto sobre os problemas e um conhecimento muito mais abstrato da realidade obtida pela mera pesquisa da “máquina”. É pela criatividade que seremos capazes de descobrir novos caminhos, fazer novas perguntas, encontrar novas perspetivas. É a criatividade que nos possibilita chegar ao pensamento original, algo que uma máquina, baseada na interpretação do que existe, não consegue.
A curiosidade, como combustível que faz avançar o motor de conhecimento do mundo, da natureza, do que nos rodeia. A vontade de saber, de imaginar, de conhecer, de ir para além do que nos é dado de mão beijada.
E, por fim, a empatia, que humaniza a relação com os mais próximos e os mais distantes e constrói pontes entre pessoas e realidades plurais e diversas. É a empatia que nos permite olhar para a memória, para o passado e encontrar a sua aplicação indireta à realidade presente. É com o seu desenvolvimento que nos incluímos, nos sentimos plurais e integrados, parte de algo maior e humano.
À sociedade urge refletir seriamente sobre estes temas. Neste período conturbado do mundo que atravessamos, deparamo-nos, muito provavelmente, com os problemas mais complexos que, como espécie, teremos de resolver. Problemas como a sustentabilidade ecológica, a falta de recursos, a sobrepopulação ou a desigualdade, necessitam de ideias novas, soluções criativas e, como tal, de pessoas competentes para encontrar essas soluções. A tecnologia irá trazer-nos os instrumentos e será com ela que poderemos encontrar os caminhos certos. No entanto, como sempre, a tecnologia traz-nos a mesma medida de benefícios e desafios. Ficamos assim obrigados a pensar no perfil de quem queremos que lide com ela e com os desafios que se avizinham. Será prioritário ensinar humanidade às próximas gerações.
-Sobre Miguel Bica-
O Miguel gosta de fazer coisas acontecer e de pensar como se constrói uma experiência, na sua relação com o público, com os artistas, o espaço e o ecossistema em que ela se insere. Colaborou em festivais de cinema como o IndieLisboa e o Doc Lisboa e foi gestor do projeto PTBluestation. Em 2014 foi um dos fundadores do Gerador, é hoje vice-presidente e director de produção e é dele a responsabilidade de materializar as inúmeras iniciativas que aí vão sendo produzidas. É formador de planeamento em eventos culturais na Academia Gerador e orientador de projecto final no curso de produção de eventos na World Academy.