Quando começaram a surgir rumores que se estava a considerar criar uma raspadinha para apoiar o financiamento do Fundo de Salvaguarda do Património Cultural, reconheço que não lhes atribuí qualquer credibilidade, tão fantasioso e despropositado me parecia tal movimento.
Promover a cultura do vício para proteger a cultura do património é tão acertado como a probabilidade de ganhar o melhor prémio numa raspadinha. Muito próximo de zero.
Sei-o pela minha vivência quotidiana, quando vejo pessoas vergadas às paredes vizinhas de qualquer tabacaria, a limar pequenos cartões com moedas, ganchos, isqueiros ou o que estiver mais à mão, no entusiasmo de serem surpreendidas com uma pequena quantia que lhes permita repetir de novo a experiência. Ambicionar mais do que isso já lhes parece desmesurado.
Mas também o sei pelas estatísticas, que demonstram que quase 80% das pessoas que jogam na raspadinha são de classe média baixa ou baixa, o que deveria ter sido antídoto mais do que suficiente para o desejo de avançar com esta iniciativa, no mínimo, controversa.
Um dos alicerces do contrato social é garantia da proporcionalidade do capital amealhado pelo Estado, pagando mais quem mais tem, como no IRS, ou, pelo menos, nivelando a angariação entre todos, como no IVA. Mas nunca admitir que a melhor forma de financiar um dever público é ir colher dinheiro preferencialmente aos mais pobres. E, não tenhamos dúvidas, é o que acontece com esta medida.
Mas o mais interessante, a meu ver, é a clareza que esta iniciativa traz para o que tem sido o pensamento cultural recente, composto por ideias soltas, órfãs de uma estratégia e com tendência para a criatividade bizarra.
A decisão de criar uma raspadinha para o património é um momento de viragem significativo na política cultural: é a oficialização do desinteresse estratégico do papel da cultura e a demonstração de que os decisores políticos não a consideram como um factor essencial no desenvolvimento do país.
E como posso ter a certeza deste momento de viragem, caro leitor? É simples. Imaginemos como a sociedade portuguesa reagiria à vontade de um governo criar uma raspadinha para a saúde, para angariar mais dinheiro para aparelhos de imagiologia? Ou para a educação, para conseguir mais apoios para comprar cadeiras? Ou para a defesa, para obter maiores verbas para viaturas blindadas?
Seria absurdo, claro. As áreas essenciais da sociedade não são sujeitas a estratagemas frágeis e inconsequentes de financiamento. Repletas de telhados de vidro. O investimento na cultura deveria ser o resultado da implementação de uma estratégia que pretende valorizar as pessoas, dando-lhes mais ferramentas para serem criativas e inovadoras.
É nesta diferença de tratamento que se nota a desvalorização da cultura. E, por isso, julgo que a comunidade cultural deve ser a primeira a opor-se frontalmente a esta ideia.
Texto escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico
-Sobre Tiago Sigorelho-
Tiago Sigorelho é um inventor de ideias. Formado em comunicação empresarial, esteve muito ligado à gestão de marcas, tanto na Vodafone, onde começou a trabalhar aos 22 anos, como na PT, onde chegou a Diretor de Estratégia de Marca, com responsabilidades nas marcas nacionais e internacionais e nos estudos de mercado do grupo. Despediu-se em 2013 com vontade de fazer cultura para todos.
É fundador do Gerador e presidente da direção desde a sua criação. Nos últimos anos tem dedicado uma parte importante do seu tempo ao estreitamento das ligações entre cultura e educação, bem como ao desenvolvimento de sistemas de recolha de informação sistemática sobre cultura que permitam apoiar os artistas, agentes culturais e decisores políticos e empresariais.