[ATENÇÃO - Este artigo faz menção a morte, dependência, suicídio e assassinatos]
Desde 1999, o dia 20 de Novembro é assinalado como o Dia da Memória Trans. Para lembrar todas as pessoas que perdemos para a violência e lembrar tudo o que ainda temos de fazer para que não morram mais.
O observatório de pessoas trans assassinadas mostra que 350 pessoas foram mortas entre 2019 e 2020, no entanto, desde 2008, o número aumenta para 3664. Também importante perceber que como os dados mostram que há grupos que são alvos ainda maiores desta violência. Pessoas negras, migrantes e transfemininas são mortas em maior número reflexo de uma sociedade transfóbica, sexista, machista, que mata e destrói tudo o que é diferente porque não sabe lidar com a riqueza que as diversidades podem trazer ao mundo.
Assinalamos este dia porque ainda são muitas, ainda são tantas. Mas são tão mais ainda que não estão nestes dados que perdem a vida de outras formas, que são assassinadas silenciosamente e ao longo dos dias, um bocadinho de cada vez por políticas discriminatórias, pela falta de emprego, pelo medo, pela solidão.
Em 2016, alguém que eu conheci em tempos foi encontrado sem vida num qualquer quarto de hotel. Sofria há algum tempo de um problema de alcoolismo e quando vivemos debaixo do mesmo teto, essa dependência minou a nossa relação com discórdias, faltas de comunicação, isolamento e perda.
Quem desapareceu, era ativista, vestia-se de drag queen desde os 16 anos, no início dos anos 90, no Reino Unido. A família de origem nunca aceitou até que deixou de ser possível a reconciliação porque os seus progenitores faleceram antes de quaisquer desculpas, perdões ou aceitações.
Depois de anos a lidar com uma dependência que ajudava a lidar com o que pesava, adormecia o que sentia, deixou de ser, de existir. Por saber que não importa o que dás ao mundo, o quanto as pessoas podem amar-te, admirar-te e até respeitar-te. Porque, a dor e o sofrimento, esses andam sozinhos até que levam a melhor e me levaram mais uma pessoa amiga.
Em caso de morte, o botão da solidariedade pouco ou nada pode fazer. Porque o luto é quase tão difícil como a luta diária que leva à morte de tantas pessoas que perto ou longe fazem o que podem e não podem para mudar o mundo à sua volta.
A memória serve para nos lembrar que mesmo que só se perdesse uma vida, essa vida já era uma perda a mais. Serve para que os seus nomes sejam ditos, para que as suas vidas sejam lembradas. Serve para que lhes seja dada humanidade mesmo quando a sociedade se esquece de lhes reconhecer a humanidade enquanto em vida.
Escrevo este texto em memória de Carl Hornsey, que foi encontrado num quarto de hotel, num país que adorava, na noite de 23 de Dezembro, sem vida. Ativista, queer, transfeminista. Pessoa que marcava quem passasse por ele e que sempre nos juntou e fazia quem chegasse sentir-se sempre bem recebida.
Para saber mais sobre o Dia da Memória Trans: https://tdor.tgeu.org/
-Sobre Alexa Santos-
Alexa Santos é formada em Serviço Social pela Universidade Católica de Lisboa, em Portugal, e Mestre em Género, Sexualidade e Teoria Queer pela Universidade de Leeds no Reino Unido. Trabalha em Serviço Social há mais de dez anos e é ativista pelos direitos de pessoas LGBTQIA+ e feminista anti-racista fazendo parte da direção do Instituto da Mulher Negra em Portugal e da associação pelos direitos das lésbicas, Clube Safo. Mais recentemente, integrou o projeto de investigação no Centro de Estudos da Universidade de Coimbra, Diversity and Childhood: transformar atitudes face à diversidade de género na infância no contexto europeu coordenado por Ana Cristina Santos e Mafalda Esteves.