Quem me conhece sabe que adoro refletir e agir em prol da defesa dos direitos das pessoas com deficiência ou de outras comunidades que ainda lutam diariamente para “conquistar” direitos básicos.
Estou convicta de que o ativismo e associativismo que exerço nascem daí, por força de uma profunda inquietação e crença de que as coisas têm, de facto, de mudar para melhor. As injustiças multiplicam-se e/ou mantêm-se a cada dia e a mudança é difícil de ver (e tão lenta é, que uso uma espécie de lupa analítica para a captar e é assim que a reconheço). Sei que já escrevi noutros momentos sobre estas matérias, mas certos pontos merecem ser (re)partilhados.
Portugal subscreveu em 2006 e ratificou em 2009 a Convenção da Organização das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, documento fulcral onde impera o espírito que nos devia nortear a todos/as enquanto sociedade. Contudo, a realidade é que – sem negar a sua inquestionável importância – continua a ser um documento que muitos desconhecem, que simplesmente nunca ouviram falar ou que é – apenas e só – ignorado/esquecido em tantas e tantas circunstâncias.
Acredito que estas mudanças são lentas (como todas as mudanças sociais e políticas profundas) por força da imagem e créditos que são construídos sobre a deficiência na arena pública e da ausência de preocupação no mundo da Justiça.
Pensemos na forma como, na esmagadora maioria das vezes, a comunicação social nos retrata. São às centenas os títulos de jornais e reportagens que se debruçam sobre relatos pessoais inspiradores em que aquela pessoa com deficiência é um caso de superação e que devia servir de exemplo para os “outros” sem deficiência, principalmente nos seus piores dias; são também às centenas as peças que retratam alguém como uma vítima de uma incapacidade dolorosa e que merece a mais profunda compaixão. Certamente nenhuma destas perspetivas espantará o/a leitor/a.
Honestamente, não sei qual destas visões é o maior entrave para o que me parece ser uma espécie de “caminho para os Direitos”. Falo de caminho porque apesar de nos serem reconhecidos - no âmbito legal e jurídico - um conjunto vasto de direitos, a verdade é que ainda estamos na fase de ter de os conquistar e lutar arduamente por eles. Acredito que o cansaço e desgaste que daí decorrem poderão ser uma parte da explicação para a ausência de um movimento coletivo forte e sólido (qual espécie de inércia que consigo compreender). Mas as dificuldades não se esgotam aí.
Temos em Portugal um traço cultural generalizado de que muito do que a sociedade “faz por nós” é uma espécie de favor ao qual devemos estar gratos/as. Este traço está presente nas atitudes de técnicos e dirigentes de serviços; na ausência de acessibilidades e de medidas inclusivas em diferentes esferas da vida social que, quando existem, devemos enaltecer; está latente, talvez, à total inoperância de algumas respostas fundamentais, como a atribuição de verbas para produtos de apoio, a título de exemplo. Vislumbra-se nas atitudes e expressões mais comuns que escutamos no espaço público quando nos deparamos com a impossibilidade de frequentar um lugar ou de realizar uma determinada ação (por não existirem medidas inclusivas): a célebre frase “eu ajudo/nós ajudámos”; observa-se nas campanhas de recolha de fundos para atribuição de produtos de apoio onde impera uma lógica de caridade. Não julgo quem a ela recorre, o desespero e a necessidade levam-nos a escolhas não muito agradáveis.
Sei que estas expressões e ações vêm de um lugar de bondade e solidariedade. Mas é importante frisar - e sem ferir suscetibilidades - que favores e ajuda alheia não são direitos. Não promovem a liberdade, a dignidade, a autonomia. E são um gigantesco entrave para que se reconheça, proteja e garanta - enquanto sociedade - estes mesmos direitos.
Aliada desta ausência de reconhecimento de uma matriz de Direitos está uma Justiça que pouco ou nada opera nestas matérias. Acredito que não o faça pela fraqueza do ativismo e por todas as fragilidades e desconhecimentos que já enumerei. Acredito que vai começar a operar quando for alvo de pressão nesse sentido por parte de quem quer e precisa de mudanças.
Creio que estamos a dar passos neste caminho e teremos bons aliados. Mas é premente que enquanto sociedade entendamos que favores não são direitos. E só com direitos poderemos dar verdadeiros passos em prol da inclusão e da aceitação (e celebração!) da diversidade humana.
-Sobre a Ana Catarina Correia-
Licenciada e mestre em Sociologia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto com interesse particular na problemática da deficiência. Foi doutoranda na mesma escola e área disciplinar, num projeto de investigação que versa sobre as políticas para a deficiência em Portugal e na Europa e que dá enfoque à filosofia da Vida Independente e que ainda não foi finalizado.
Atualmente, é técnica no Centro de Apoio à Vida Independente Norte da Associação Centro de Vida Independente. Na mesma organização é dirigente e coordena a delegação do Porto. Colabora, ainda, com outras organizações representativas de pessoas com deficiência. É ainda atleta federada de Boccia pelo Sporting Clube de Espinho e membro da seleção nacional da modalidade desde 2016.
Grande motivação na vida: a crença de que a construção de sociedades justas e inclusivas depende de cada um de nós e que esse será um dos grandes sinais de desenvolvimento humano. E qual é uma das grandes bases para este desenvolvimento? A educação e uma consciência global de Direitos Humanos.