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Disco riscado: Todos procuramos um lugar a que possamos chamar casa

Na Revista Gerador 43, na crónica Disco Riscado, que agora partilhamos contigo, Luís Sousa Ferreira fala-nos sobre a crise habitacional em Lisboa, destacando a especulação imobiliária e a importância da integração cultural para garantir um lar para todos, enquanto relembra a essência do espírito de Abril na construção diária de um país mais justo.

Opinião de Luís Sousa Ferreira

Fotografia de Raul Pinto

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Estamos em plenas celebrações dos 50 anos do 25 Abril, e a maioria das instituições públicas e culturais reservaram espaço nas suas agendas para assinalar esta data. Começamos o ano com inúmeros desafios e aproximam-se várias eleições de extrema importância. Apesar de menos de dois meses separarem a escrita desta crónica da sua publicação, estes dois momentos são divididos por uma incógnita gigante. A ausência de previsibilidade dilata o tempo. Escrevo esta crónica instalado na minha casa dos últimos 13 anos, mas é certo que aqui não estarei a folhear o próximo número da Revista Gerador. Escrevo num país com um Governo de gestão, e o leitor desta crónica já saberá quem encabeça os destinos do país.

A minha senhoria é, na realidade, a cabeça de casal da herança da qual a casa onde ainda resido faz parte. Dela recebi a tão temida carta de rescisão de contrato, no seu bom advogadês intimidatório: «Comunico a V.ª. Ex.ª a Oposição à Renovação, peço que o contrato não se renovará no próximo dia 31 de março, devendo proceder, nessa data, à entrega do Locado livre de pessoas e bens, …» Nem um telefonema, nem uma justificação. Está, segundo a lei, no seu pleno direito, mas continuo a achar que há outras formas de lidar com a vida das pessoas. Herdam-se casas, perdem-se bens.

Comecei, então, a consultar os sites mais populares e percebi rapidamente que encontrar um T1 em Lisboa, por menos de quatro dígitos, não seria tarefa fácil. As poucas oportunidades que surgiam ficavam disponíveis por muito pouco tempo, com as caricatas particularidades, a que já nos fomos habituando a ver em reportagens televisivas.

Na data em que escrevo, ainda não se vislumbra o resultado das eleições legislativas. Todos deitam a casa abaixo, mas nenhum apresenta medidas suficientemente pragmáticas que ajudem a transformar a realidade da habitação. Na rua, cruzam-se manifestações sobre as dificuldades de conseguir um lugar a que se chame lar, com os preocupantes discursos xenófobos de trazer por casa, mascarados de políticas de imigração. Uns atravessam bairros, outros, continentes, mas o sentido é o mesmo: todos procuramos um lugar, a que possamos chamar casa.

No caminho do arrendamento, tropecei numa Lisboa menos acolhedora, pouco digna dos painéis turísticos. Claramente, parto em vantagem por ser português. Compreendo que, nas incertezas do arrendamento, um proprietário queira apostar naquilo que lhe pareça mais familiar, por achar que consegue ter mais controlo. Numa das visitas que fiz, o responsável que me apresentou a casa, um falante de espanhol, vindo de um dos países da América Latina, enviou-me a seguinte mensagem logo após a minha visita: «Esqueci-me de mencionar uma vantagem. O senhorio só aceita pessoas que saibam conviver. Aqui só vivem portugueses, neste sentido a casa é tranquila.» Fiquei um pouco atónito com a mensagem, não só pelo seu teor, mas também por ter sido um imigrante a escrevê-la. Onde viverá aquele agente imobiliário imigrante? Que reserva a grande Lisboa para quem vem à procura de lhe chamar casa? Apenas consegui responder com um «obrigado» e com o reforço de que nada tinha contra estrangeiros.

Enquanto estava sem lugar a que poderia chamar «casa», lancei um apelo nas minhas redes sociais. Com as respostas colecionei muitos desabafos, propostas sem recibo e quartos onde não cabia um colchão. Uma amiga sugeriu-me um andar no seu prédio. Contudo, acabou por ser arrendado por 2500 euros a um irlandês que precisava de uma morada fiscal em Portugal. Mais uma casa vazia, a servir propósitos que não os da habitação.

Atualmente, a casa já não é um bem essencial para se viver, mas um fundo para a multiplicação de dinheiro. A especulação imobiliária é um dos problemas mais prementes do mundo ocidental. Existem quarteirões inteiros confiscados por estas novas lógicas de investimento. A atualização vertiginosa das rendas tem expulsado habitantes, associações culturais e casas de comércio. Os preços praticados não se coadunam com os salários, serviços e dinâmicas locais. Onde antes moravam pessoas, hoje pernoitam. Onde se vendia a diversidade e se alimentava a Lisboa castiça e particular, hoje instalam-se as multinacionais do comércio e da cultura de massas.

No meio desta odisseia, lá consegui arrendar uma casa em Lisboa. Um bairro simpático, central, numa casa com história e cheia de personalidade. A impossibilidade do acesso a carros e a necessidade de obras jogaram a meu favor, numa disputa hercúlea contra outra cabeça da hidra. Ao preço proposto pelo proprietário existiam intermediários disponíveis para pagar mais do dobro. Agentes que viam aquele apartamento como fonte de receita para alugueres indevidos, num claro aproveitamento das vulnerabilidades dos imigrantes. Felizmente, o senhorio preferiu o certo pelo incerto.

A escassez de casas arrendáveis está a ser um pretexto para a clássica procura do inimigo comum. Neste momento, o foco vira-se para os imigrantes. As manifestações públicas e os mitos espalhados pelas redes sociais reforçam estigmas e provocam a guetização das múltiplas comunidades que compõem esta nova velha cidade. Lisboa sempre foi, desde a sua génese, uma cidade de «mourarias e judiarias», um porto para pequenas e grandes estadias, um encontro multicultural e um escape para boa parte do país. Portugal, há só poucos anos, equilibrou os seus fluxos migratórios. Devemos discutir as migrações, perceber que condições estamos a dar às pessoas, fiscalizar eventuais máfias e aproveitamentos. Contudo, necessitamos de trabalhar o assunto na sua raiz, a cultura. Urge a criação de projetos culturais que nos aproximem, que nos deem gosto pelas diferenças, mas que trabalhem o que é comum. O que estão a fazer as múltiplas instituições culturais públicas? Este é um dos desafios mais prementes das cidades e nenhuma instituição lhe pode virar as costas. No entanto, já existem bons exemplos de iniciativa cívica. É o caso, por exemplo, da Largo Residências, uma cooperativa cultural e social que contribui para o desenvolvimento local, impulsionando a criação artística e a integração comunitária. Com um trabalho múltiplo, ajuda agentes culturais a fixarem-se no centro da cidade e acolhe artistas refugiados que projetam participação cívica e um intercâmbio genuíno entre as várias comunidades de proximidade. Fê-lo no Intendente, no Cabeço de Bola e fará agora no antigo Hospital Miguel Bombarda.

No final de março, já terei casa nova, depois das obras, esperando que o país também faça as devidas. Espero que consiga combater os especuladores e enfrentar estes desafios com soluções que não envergonhem Abril. O mês mais bonito do ano deve ser celebrado, mas construído diariamente. A casa não se constrói pelo telhado.

-Sobre o Luís Sousa Ferreira-

Formado em design industrial, é adjunto da direção artística do TNDMII, docente na ESAD.CR e presidente da Riscado. Foi fundador e diretor artístico do 23 Milhas, BONS SONS, Aldear e Caminhos do Médio Tejo. Trabalhou também na Braga’27, experimentadesign e CENTA (Centro de Estudos de Novas Tendências Artísticas). É o autor da crónica «Disco Riscado» na Revista Gerador.

Texto de Luís Sousa Ferreira
As posições expressas pelas pessoas que escrevem as colunas de opinião são apenas da sua própria responsabilidade.

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