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Dissecar o insulto

Nas Gargantas Soltas de hoje, André Tecedeiro reflete sobre os insultos dirigidos às pessoas LGBTQIA+.

Opinião de André Tecedeiro

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No dia 17 de maio, Dia Internacional contra a Homofobia, Transfobia e Bifobia (IDAHOT), estive presente na Assembleia da República para assistir à discussão sobre alterações a leis que afetam a minha comunidade. 

Foi triste presenciar a ignorância e a transfobia descarada de alguns discursos, naquele dia que simbolicamente marca a luta contra esse tipo de violência. 

Insultos, insinuações, piadas, alcunhas, humilhações são desde sempre usados como violência psicológica contra pessoas LGBTQIA+. Mesmo quem está "no armário" sofre com os insultos direcionados às comunidades às quais, em segredo, pertence. 

De acordo com um estudo português de 20101, o insulto “é utilizado como forma de estigmatização das pessoas LGBT, e assume um caráter banalizado e frequente”. Ser alvo de insultos é uma condição tão intrínseca à experiência queer, que uma das formas de fortalecimento e empoderamento da comunidade é a apropriação dos insultos que lhe são dirigidos. 

Queer, significava na sua origem "estranho" ou "esquisito". No século XIX, era usada como um insulto contra pessoas com orientações sexuais ou identidades de género não normativas. A partir dos anos 80, a comunidade apropriou-se desse termo como forma de identificação, orgulho e empoderamento. 

Apropriando-se do insulto, as pessoas queer não deixam o poder nas mãos de quem as olha de fora e não as compreende. Usam o insulto como um espaço de visibilidade, porque a invisibilização também é uma forma de violência. Ressignificar reitera aquilo que quem insulta deseja apagar. 

Lila Tiago e João Caçador usam esta estratégia de apropriação e ressignificação do insulto. A sua atitude desafiadora começa no nome que escolheram para o seu projeto, Fado Bicha, que deixa claro que estamos perante aquelas bichas de quem se fala sem conhecer as suas dores e alegrias. Pisam o palco orgulhosas e poderosas, assumindo a identidade que lhes foi imposta como uma forma de resistência. 

No prefácio do seu romance “As malditas”, Camila Sosa Villada escreve que “abaixo da linha do Equador, quase a tocar no fim do mundo, muitas de nós fomos desenterrar a palavra travesti”. 

Camila refere-se à forma como as mulheres da América Latina se apropriaram do insulto travesti para nomear as suas próprias identidades, distanciando-se das teorias trans exportadas pelo norte global. Teorias regulamentadoras, patologizantes e marcadas pelo binarismo colonial. 

A apropriação da palavra travesti é um gesto de resistência, que renova a palavra usada para o insulto e a devolve poderosa, habitada por identidades reais, livre de gestos colonizadores e enriquecida pela cultura de origem destas mulheres. 

Vejo essa possibilidade de ressignificar o insulto como algo poético. São essas tensões que me fazem acreditar que a linguagem é um organismo vivo, capaz de acompanhar os seres humanos na sua eterna mutação. 

O que é um insulto? Uma palavra por si só não tem valor moral. Para que uma palavra se transforme em insulto, interessa saber quem a diz, a quem é dirigida, em que contexto e com que intenção. 

Uma palavra só se torna insulto quando há um problema social que o sustente. Esse problema pode ser transfobia, homofobia, racismo, o que seja. Sem isso, muito do que consideramos insulto perderia imediatamente o seu significado e poder. 

No dia 17 de maio, na Assembleia da República, uma deputada afirma que a discriminação das pessoas trans é irrelevante porque os seus problemas não se podem sobrepor aos de todos os portugueses. Com esta afirmação exclui de forma estratégica as pessoas trans do grupo dos “portugueses”. Os que comem, trabalham, habitam, estudam, cuidam da família, pagam os impostos e os salários dos deputados. Ao contrário das pessoas trans, que são apenas trans. 

Um outro deputado de extrema direita diz que "ainda vamos ver o PS a propor nesta câmara que uma pessoa se possa registar como um animal se se identificar como cão ou como gato, e o PAN a propor a distribuição de chifres gratuitos". 

Nada disto é inocente. 

Insinuar que pessoas trans não são cidadãos; insinuar que não existem; negar que sofram discriminação; acusá-las de invisibilizar a restante comunidade LGBTQIA+; comparar as suas identidades a animais. Tudo isto são estratégias de diabolização e desumanização. Tudo isto aconteceu na Assembleia da República no dia 17 de maio. 

Foi a desumanização que permitiu causar o sofrimento e morte de milhões de homens gays, pessoas ciganas e judias sem que vozes contra se levantassem. A desumanização anestesia as consciências. É pela desumanização que se começa a matar. 

Discursos desumanizadores são lidos na casa da democracia sem chamadas de atenção. Pelo contrário, num plenário que esteve sempre barulhento, foi assustador como toda a gente se calou para os ouvir melhor.


1 Oliveira, J.M., Pereira, M., Costa, C. & Nogueira, C. (2010). Pessoas LGBT – identidades e discriminação. In Estudo sobre a discriminação em função da orientação sexual e da identidade de género . Lisboa: Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género.

-Sobre a André Tecedeiro-

André Tecedeiro é um escritor português nascido em 1979. Tem licenciatura e mestrado tanto em arte como em psicologia. Publicou sete livros de poesia, sendo o mais conhecido “A Axila de Egon Schiele” (Porto Editora, 2020).

Texto de André Tecedeiro
As posições expressas pelas pessoas que escrevem as colunas de opinião são apenas da sua própria responsabilidade.

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