Numa era marcada pela globalização e pelos seus efeitos, a língua funciona, muitas das vezes, como motivo de encontro entre culturas e anseios que se fazem sentir nos diferentes países. É também nesse sentido, que a língua portuguesa, no chamado espaço da lusofonia, tem dado azo a uma maior proximidade entre autores, colocando em cima da mesa temáticas cujo debate nem sempre se fazia notar. O mesmo sucede com o teatro e com a dramaturgia que, ao longo das últimas décadas, se tem escrito em português, motivando leituras mais diversas e abrangentes, onde as fronteiras físicas se acabam por dissipar, criando lugares de encontro e discussão.
Foi a partir deste ‘estado de coisas’ que a 33 Ânimos, companhia de teatro fundada em 2012 por Daniela Rosado e Ricardo Cabaça, decidiu criar, em 2018, o projeto “Dramaturgia Transatlântica”. Com o objectivo de valorizar cada vez mais a dramaturgia lusófona, a iniciativa, que tem por base um ciclo de leituras, pretende divulgar autores que estão a escrever teatro em português, sem que qualquer barreira possa afastar os dramaturgos do seu público potencial.
Em entrevista ao Gerador, Ricardo Cabaça conta como tudo começou no Brasil, aquando da apresentação de um livro seu em São Paulo, que lhe despertou o interesse para a possibilidade de se criar uma plataforma de intercâmbio de textos escritos tanto em Portugal como no Brasil. “Logo nessa altura, começámos a desenvolver o projeto que serviria para termos este intercâmbio, pelo menos inicialmente, de textos dramatúrgicos portugueses e brasileiros”, conta. Mais tarde, já em 2019, e depois de participar no Seminário Internacional de Dramaturgia de Belém, o também dramaturgo decide organizar, então, uma primeira seleção de textos, que pudessem ser lidos tanto em Portugal como do outro lado do Atlântico.
Num modelo de leitura encenada, a primeira edição deste ciclo contou com textos de Portugal e do Brasil, através de peças de autores contemporâneos - entre os quais Mickaël de Oliveira, Cláudia Lucas Chéu, Victor Nóvoa ou Sílvia Gomez - que representam o teatro feito nos dois países, tendo como centro da sua criação uma voz política que questiona os paradigmas das sociedades contemporâneas. As leituras aconteceram em simultâneo nos dois países, e a Livraria da Travessa — uma em São Paulo e outra em Lisboa — serviu de palco improvisado.
“Na mesma semana foram lidos os mesmos textos nos dois países, três portugueses e três brasileiros, e foi incrível, porque tivemos a noção de que que alguma coisa positiva estava a acontecer, com textos a atravessar continentes e saber que naquele período o público brasileiro e português teriam acesso a peças que de outra forma provavelmente não teriam”, realça.
O texto dramatúrgico: pouco editado, pouco lido
Um dos aspetos essenciais que marca este projeto é também a tomada de consciência de que existem cada vez mais autores do espaço lusófono a escrever para teatro, que nem sempre têm o devido reconhecimento. “Por um lado, o texto dramatúrgico é pouco editado. No caso português, a Cotovia, que publicava teatro, fechou e, neste momento, há poucas editoras que estão a apostar no género. Temos a não (edições), a Douda Correria, a Húmus, a Companhia das Ilhas, mas a verdade é que o texto dramático continua a ser muito pouco publicado e muito pouco lido, mantendo-se como o parente pobre da literatura”, sublinha.
Sabendo igualmente da condição afeta a este tipo de texto, que muitas vezes é apenas entendido como um medium para aquilo que é posteriormente levado ao palco, tendo um percurso efémero, senão mesmo terminal, Ricardo justifica a necessidade de se mostrar que por um lado existe diversidade das temáticas exploradas e que, por outro, este tipo de texto serve não apenas para a encenação — como produto final — mas também para ser lido e fruído de forma mais inusitada. Tendo em conta esta mesma diversidade, que se nota igualmente no tratamento linguístico, o projeto começou a estender-se até outros países, nomeadamente em África, com textos de Angola, Moçambique e Cabo Verde.
Para além da possibilidade de se evidenciarem as múltiplas vozes que compõem este espaço simbólico, o dramaturgo considera ainda que, desta forma, se permite conhecer as “inquietações” destes dramaturgos, onde a língua funciona como laço comum, sendo também uma ferramenta de desconstrução dos aspetos mais negativos da história entre estes países, marcada pelo passado colonialista e de guerra.
A necessidade de adaptação à situação pandémica
Já orientado para um lugar de fala mais abrangente, o projeto de leituras em espaços físicos teve de ser, mais recentemente, adaptado à situação pandémica que se vive. Desta forma, e através de uma parceria com o portal Coffeepaste, as leituras passaram a um formato de podcast, divulgado mensalmente. Com leituras feitas por diversos atores e atrizes convidadas, provenientes dos diversos países lusófonos, o projeto ganha assim a missão de se tornar também num arquivo de textos, que podem ser mais facilmente consultados.
“A transformação em podcast teve, para nós, duas valências muito importantes: por um lado, pode servir quase como um laboratório para os dramaturgos, uma vez que muitas das peças nunca foram encenadas ou lidas publicamente, dando possibilidade aos próprios autores de escutar o seu texto e eventualmente corrigir algumas partes; e por outro lado, indo ao encontro dessa ideia de que a dramaturgia não é editada, nós estamos, no fundo, a criar também um arquivo que se manterá no futuro”, sintetiza.
Até ao momento, foram lançados sete episódios — o último deles disponibilizado no dia 21 de dezembro, com o texto “Poderia ter sido”, da dramaturga brasileira Ângela Ribeiro, lida pelos atores Eduardo Breda e Maria Olas. O fundador da 33 Ânimos explica que os textos divulgados são selecionados tendo em conta a pertinência da temática e a sua duração, sendo organizadas leituras com atores dos diversos países, gravadas para o efeito pretendido.
Criar um diálogo mais estreito entre dramaturgos e companhias
Pela sua experiência como dramaturgo, que também já se aventurou na encenação, Ricardo Cabaça sublinha a ideia de que deveria existir um diálogo mais estreito entre companhias e dramaturgos, sendo que este projeto de leituras pretende facilitar esse mesmo acesso. “Acho que faz falta haver um trabalho mais estreito entre todos os lados do teatro, que muitas vezes até podia, eventualmente, libertar os coletivos e as companhias de terem de assumir a parte de criação do texto e canalizar essa energia apenas para a encenação”, advoga.
No caso do projeto “Dramaturgia Transatlântica”, refere, esse papel seria ainda mais marcante, uma vez que permitiria que companhias dos diversos países pudessem ter contacto com novos autores, cujas linguagens e temáticas trariam uma maior riqueza àquilo que é encenado. Ricardo dá, como exemplo, a dramaturgia contemporânea brasileira, marcada atualmente por questões políticas e relacionadas com o racismo ou com as questões de género, ou a dramaturgia de autores africanos, em que as questões identitárias estão bem presentes, assim como a desconstrução daquilo que foi o seu passado colonial. Nessa passagem de testemunhos e inquietações, também o próprio teatro pode começar a derrubar as suas fronteiras físicas e simbólicas — através do diálogo que pode começar num simples ato de leitura.