A maior parte dos moradores do prédio da Dona Esperança já tinha começado a ir trabalhar para os seus locais habituais de trabalho. Ficaram os reformados, os pais com crianças pequenas, os que mantinham o teletrabalho, os que estavam em lay off, as pessoas de risco e os que ficaram desempregados. A situação era complexa.
O casal de artistas do 5. Dto. tinha ficado sem rendimentos desde o confinamento e não tinha perspetivas de um futuro sustentável a curto e a médio prazo. “Portugal não é um país para artistas” disseram ao Sr. Faria quando se cruzaram à entrada do prédio. “É escassa a proteção social, temos contratos intermitentes e as políticas culturais estão muito longe de serem adequadas à realidade dos artistas”.
Contaram ainda que se tinham candidatado a apoios de fundações privadas e a organismos do estado, mas os resultados eram escassos e, em alguns casos, as contrapartidas exigidas pelo apoio chegavam a ser vergonhosas, num desrespeito profundo pelo valor do trabalho.
Durante meses, artistas e profissionais do espetáculo de vários “palcos” tinham ficado com a sua atividade artística suspensa ou cancelada. Aqueles que já tinham uma situação precária anterior ao confinamento, viram os seus rendimentos desaparecer por completo ficando à mercê de cabazes solidários, para não morrerem de fome. “Se em Portugal a falta de recursos para a cultura é insuficiente, noutros países os artistas foram protegidos, com quantias que lhes permitiam continuar a criar e a viver com dignidade”, informaram em voz alta o Sr. Faria, que ouvia muito mal.
O casal de artistas tinha ficado sem a possibilidade de expor, de estrear um espetáculo e sem os workshops e aulas que tinham para dar. Ainda assim, tinham tentado reinventar-se, recorrendo aos meios digitais e a novas “ferramentas” que o tempo em casa e a necessidade os fez explorar. Contudo, o esforço não era o suficiente para manter a sopa na mesa até ao final do mês.
No prédio da Dona Esperança, todos estavam atentos à situação e arranjaram formas simpáticas de apoiar o casal. Mas eles não eram os únicos a precisar de ajuda. O Marco tinha ficado desempregado com o encerramento do ginásio onde trabalhava. Apesar da angústia que a situação lhe causava, manteve as suas aulas de exercício matinal online para todos os vizinhos, durante todo o período de confinamento. O que inicialmente foi feito de forma voluntária e solidária para ajudar os vizinhos, pouco a pouco, começou a tornar-se rentável com a inscrição de novos alunos, que os próprios vizinhos foram recrutando.
A Sara do 2. Dto foi uma das moradoras mais ativas durante o tempo de confinamento. Ela tinha apoiado os vizinhos num verdadeiro espírito de missão. No prédio, ajudou a família Pereira desde o nascimento da bebé Aurora, a vizinha Madalena Sousa depois do episódio de violência doméstica e o Sr. Faria quando precisou de trocar o aparelho dos ouvidos. Não tinha mãos a medir e, por estar tão concentrada nas necessidades dos outros, não reparou no que se passava consigo.
Quando o período não apareceu, não se preocupou; algumas amigas tinham-lhe contado que andavam com os períodos trocados durante aqueles meses de quarentena. Achou que se passava o mesmo com ela. Já estávamos em junho e, como o período não apareceu de novo, resolveu marcar uma consulta com a sua médica. Há muito que ela e o Pedro tentavam engravidar e não conseguiam. Iam começar os tratamentos de infertilidade na Maternidade Alfredo da Costa antes do estado de emergência, mas foram adiados para data a determinar. Quando recebeu o telefonema da MAC a desmarcar a consulta fartou-se de chorar, depois decidiu que não iria aborrecer-se com a situação, uma vez que não estava nas suas mãos.
A sua vida sexual e a do marido tinha-se mantido regular durante aqueles meses, talvez até, com mais graça e entusiasmo, já que a maratona de “sexo com horas marcadas” tinha sido adiada por algum tempo. Sem preocupações, sem stresse e com a atenção dirigida para os outros, a ansiedade foi diminuindo. Ao falar com a sua ginecologista tudo parecia indicar que seria apenas uma alteração hormonal provocada pela alteração de rotinas. Mas durante a ecografia a médica mudou totalmente de expressão.
Quando saiu da clínica, sentia o coração a sair pela boca e uma vontade enorme de abraçar todos aqueles que lhe aparecessem à sua frente. Dançava e pulava e dizia a quem passasse por ela: “Estou grávida! Estou grávida!”
Quando ligou ao marido a avisar, o Pedro ficou emocionado e chorou copiosamente. O contentamento era tão grande que foi de porta em porta avisar os vizinhos de que a mulher estava grávida. A alegria de todos os vizinhos era genuína, todos gostavam muito dela e sabiam como desejava ter filhos há muito tempo.
Quando a Sara chegou a casa, para além do Pedro que a esperava no hall da entrada do prédio, estavam também alguns vizinhos para a parabenizar: a Raquel, a Margarida, a Isabel e o Rui e a Dona Esperança, todos sorriam por detrás das suas máscaras de tecido ao vê-la entrar tão feliz.
Muito se tinha passado desde março. Felizmente, a maioria dos acontecimentos tinham sido positivos e, todos ou quase todos, tinham conseguido sobreviver ao maior desafio de 2020. Cada vez havia mais preocupação e cuidado entre os moradores daquele prédio e essa tinha sido a grande revolução da quarentena. As atitudes tinham mudado no prédio, mas também se sentia isso no bairro, na cidade, no país e talvez também em muitas partes do mundo. Nunca nada tinha colocado tantas pessoas na mesma situação, nunca nada tinha feito com que todos se apercebessem que era preciso trabalhar em equipa, serem solidários e de apoiar o vizinho do lado.
Foi um salto civilizacional extraordinário. Agora que as portas e as fronteiras voltavam a abrir era preciso continuar a lutar por um mundo mais justo e mais igualitário. Já ninguém podia ficar indiferente, já ninguém podia aceitar injustiças... E foi com esse espírito que marcharam naquele sábado, porque #blacklivesmatter.
-Sobre a Marta Crawford-
É psicóloga, sexóloga e terapeuta familiar. Apresentou programas televisivos como o AB Sexo e 100Tabus. Escreveu crónicas e publicou os livros: Sexo sem Tabus, Viver o Sexo com Prazer e Diário sexual e conjugal de um casal. Criou o MUSEX — Museu Pedagógico do Sexo — e é autora da crónica «Preliminares» na Revista Gerador.