Nestes dias pós-eleitorais é fácil encontrar quem se proponha explicar o porquê da ascensão da extrema direita em Portugal. Muitas vezes, porém, despindo-se de culpa, a dita “oposição” fá-lo apontando o dedo a um tu — culpado — que lhe é distante.
Assim, fingindo que o eu nunca se merge no tu e afirmando que o tu é o problema,insiste num pensamento binário e beneficia dele por este lhe permitir, também, rejeitar a sua própria responsabilidade. Na verdade, foi este medo de assumir responsabilidade — traduzido num passar da batata quente — que nos trouxe até aqui.
Somos todos coletiva e individualmente responsáveis pelos resultados eleitorais, e somo-lo por aceitarmos (ou não rejeitarmos) as políticas de memória instituídas em Portugal: os discursos e práticas através dos quais é decidido onde, como e em que condições alguém ou algo é lembrado ou esquecido. Estas, insistindo em narrar uma suposta memória coletiva da qual muitas perspetivas foram apagadas, romantizam o passado tornando-o fácil de digerir e ignorando (ou escondendo) que o povo português é, na sua maioria, beneficiário das atrocidades cometidas.
Vemo-lo, por exemplo, na estátua do Padre António Vieira presente no Largo Trindade Coelho que, através da paternalização, infantilização e negação da resistência dos povos indígenas, representa António Vieira rodeado por três crianças ameríndias que guia, disciplina e pune enquanto figura paternal, contando o imaginário de um colonialismo benigno.
Nunca tendo ocorrido uma verdadeira reconciliação com o passado, estas políticas criam uma memória competitiva, transmitindo a ideia errônea que as diferentes memórias se excluem mutuamente da esfera pública, como explicado por Michael Rothberg. Aceitando a predominância de uma determinada classe, grupo ou etnia na constituição da memória coletiva, negam a legitimidade dos restantes para serem sujeitos históricos, não conferindo às suas memórias o mesmo cuidado e consideração. Em suma, restringem o direito à memória e o direito à verdade histórica.
A arte e a cultura, neste âmbito, têm colmatado aquilo que as políticas da memória se recusam a fazer. Enquanto linguagem, expõem um relato de experiências alternativo, permitindo a reparação e a superação do trauma através do diálogo e abrindo esse mesmo diálogo a uma contra-história. Mas isto não basta. E mais, não basta que aconteça apenas nas margens do olhar público.
A extrema direita cresce na falta de pensamento crítico e na falta de cuidado — de nós pelos outros e dos outros por nós. Cresce, portanto, no pensamento binário que nega as interrelações da coletividade e as complexidades práticas e histórico-culturais que influenciam os processos de tomada de decisão.
É necessário reestruturar os nossos espaços culturais para que promovam uma outra forma de narrar a História. Muitos deles ainda vêem e expõem a cultura como pré-definida, governada por poucos e aberta a muitos. É necessário parar de falar de e abrir as portas à democracia cultural que, ao invés, apresenta a cultura como indefinida, um estado em que todos são habilitados a participar enquanto parte ativa na construção da cultura coletiva.
Face ao futuro que se avizinha de nós é urgente, mais que nunca, cuidarmos uns dos outros e instituirmos uma política do cuidado e da não-violência entre as forças democráticas.
Aproximando-se as eleições para o parlamento europeu, é urgente trazer para o discurso político um diálogo mais amplo e responsabilizarmo-nos perante ele, cuidarmos das suas memórias. É também urgente votar em quem salvaguarda a cultura e os artistas e assim protege estes espaços de partilha.
Citando o manifesto ReConstituição Portuguesa, “A cada página, um corpo, um trauma, uma voz diferente. Uma colcha de retalhos composta por gritos, ora de indignação, ora de dor, mas sempre de liberdade. Se celebrar a Revolução de Abril sempre foi importante, em tempos de ameaça à democracia por parte da extrema-direita torna-se fundamental”.
-Sobre a Noa Brighenti-
Noa Brighenti, aos 22 anos, navega entre duas dimensões distintas: o seu percurso académico no mundo jurídico e o seu envolvimento em várias equipas e projectos artísticos e culturais.
Aluna finalista na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e pós-graduada em Direito da Igualdade, dedica-se a explorar a influência recíproca entre estas duas dimensões e o seu impacto coletivo na sociedade. Nos seus tempos livres, coleciona gatos e perguntas, passeia, pinta e lê. Gosta de escrever, é a sua linguagem.