“Olhe, é para um amig@”
Decerto já todos usámos este estratagema quando queremos saber uma resposta para o que nos aflige mas temos vergonha de assumir que é mesmo para nós.
“Olhe, um amig@ tem isto ou sofre daquilo e queria saber, para o descansar, o que afinal poderá ser”. Ou o mais clássico, ”tenho um amig@ que (acrescentar a maleita)”. Quem nunca, não é verdade?
Acontece que se tal exercício nunca é boa prática, pois as maleitas têm sempre origens diversas e tratamentos diferentes, continuamos mergulhados numa vergonha social que nos impede de assumir que precisamos de ajuda para esta ou aqueloutra situação.
O “é para um amig@” já se tornou até numa espécie de expressão, jocosa, que admite automaticamente que estamos a falar de nós próprios, mas ainda nem todos o entendem ou utilizam como “código”.
Na verdade, não há nada mais errado que pedir uma opinião para um terceiro, pois poderá levar a um diagnóstico errado com todas as repercussões que esse bater de asas de borboleta envolve.
Está na hora de assumir, sem receio ou vergonha, que “esse amig@” somos nós e que precisamos de ajuda. Nem que seja uma conversa de apoio e compreensão, mas de alguém que nos ouça e acarinhe e depois, se puder ou souber, nos encaminhe para a verdadeira ajuda.
O primeiro passo nem é pedi-la, mas ter coragem para deixar a vergonha de lado, assumir que se precisa de apoio e aí, sim, tentar obtê-la. Não me canso de repetir este simples processo e vou fazê-lo até ao dia em que conseguirmos falar de Saúde Mental de forma natural e construtiva.
Num repente, por causa da pandemia, a “Saúde Mental” passou a estar na ponta da língua de muitas pessoas, algumas famosas na nossa sociedade, que muitas vezes até pretendem ajudar, abrindo o seu coração e explicando o que as atormenta. Mas temos de ter cuidado com o factor replicador (ou de imitação de sintomas) que este tipo de atitude pode fazer acontecer.
As doenças são várias, muitos dos sintomas semelhantes, mas tudo depende de pessoa para pessoa, como vive e sobrevive com essa realidade, como está preparada para enfrentar uma mudança significativa de vida, qual o apoio que tem em casa, família e amigos, qual a rede de protecção social e, naturalmente, se tem acesso a tratamento e acompanhamento profissional.
Imaginem uma simples dor de cabeça. Sentimo-la e pedimos ao amigo “não tens aí qualquer comprimido para me aliviar desta dor de cabeça?”. E o amigo vai ao armário dos medicamentos e oferece o que lhe surge à frente. Uma aspirina, por exemplo.
Se esta solução pode até melhorar o mau estar, a questão é se, afinal, esta dor de cabeça não é uma cefaleia ou, pior, uma enxaqueca. O que pode parecer a mesma coisa, pois os sintomas são até parecidos, nada têm a ver como diagnóstico e muito menos o tratamento fármaco é o mesmo.
Portanto, tentem transportar esta simplificação para um problema do foro psicológico: num repente sentimo-nos mesmo muito tristes. Um amig@ pode dizer-nos, “bebe um chá que isso já passa” ou “toma um comprimido para dormir que amanhã estás outr@.”
Num repente, esta tristeza atira-nos para a cama dias a fio e pode ter complicações graves, como uma depressão. Mas o nosso primeiro pensamento será sempre o que nos foi dito e repetido “amanhã já passa”.
Sabemos que não passa.
Portanto, pensem bem quando pedem uma solução “para o amig@” pois pode vir a ser o princípio de um mau bocado.
A solução é dizer que nos sentimos menos bem e tentar obter a melhor ajuda possível.
*Texto escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico
-Sobre Ana Pinto Coelho-
É a directora e curadora do Festival Mental – Cinema, Artes e Informação, também conselheira e terapeuta em dependências químicas e comportamentais com diploma da Universidade de Oxford nessa área. Anteriormente, a sua vida foi dedicada à comunicação, assessoria de imprensa, e criação de vários projectos na área cultural e empresarial. Começou a trabalhar muito cedo enquanto estudava ao mesmo tempo, licenciou-se em Marketing e Publicidade no IADE após deixar o curso de Direito que frequentou durante dois anos. Foi autora e coordenadora de uma série infanto-juvenil para televisão. É editora de livros e pesquisadora. Aposta em ajudar os seus pacientes e famílias num consultório em Lisboa, local a que chama Safe Place.