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Preliminares: É possível ser-se feliz depois de um abuso?

Na Revista Gerador 43, na crónica Preliminares, que agora partilhamos contigo, Marta Crawford fala-nos sobre a possibilidade de encontrar felicidade após o abuso sexual, realçando a importância do apoio terapêutico e do amor dos parceiros para superar as sequelas e redescobrir o prazer na intimidade.

Opinião de Marta Crawford

Fotografia de Diana Mendes

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Os casos de violência sexual que tenho acompanhado ao longo da vida são aqueles que mais me têm marcado. A maior parte deles, como se pode adivinhar, são situações de violência sexual sobre meninas, muitas vezes com requintes de malvadez que são difíceis de entender. Muitas meninas, agora mulheres, foram violentadas de forma perpetuada, em que os abusadores recorreram a ameaças, coação, umas vezes mascaradas por expressões falsas de afeto, mas geralmente com demasiada violência.

De acordo com a organização mundial de saúde, a violência sexual pode ser definida como «qualquer ato sexual, tentativa de consumar um ato sexual ou outro ato dirigido contra a sexualidade de uma pessoa por meio de coerção, por outra pessoa, independentemente da sua relação com a vítima e em qualquer âmbito. Compreende o estupro, definido como a penetração mediante coerção física ou de outra índole, da vulva ou ânus com um pénis, outra parte do corpo ou objeto».

Em todo o mundo (piora em situações de conflito) e no nosso país, demasiadas meninas sofreram e sofrem, todos os dias, os horrores de um abuso que não podia acontecer num mundo ideal. Basta ver as estatísticas de violência, identificadas pelas organizações mundiais que fazem essa contabilização, para ficarmos sem fôlego. São demasiadas, mas bastaria apenas uma para ser muito.

Fico sempre com um nó na garganta quando me fazem relatos de agressões sexuais, muitas vezes, confessadas pela primeira vez no meu consultório. Sinto-me muito zangada com o que oiço e tenho uma empatia profunda com estas mulheres e, por isso, sinto-me no dever de fazer tudo o que estiver ao meu alcance para que aquela mulher que está à minha frente possa ultrapassar a situação e para que consiga, apesar de tudo, ser feliz.

Nos últimos anos, os relatos têm acontecido talvez com mais frequência. Estes casos, infelizmente, surgem sempre. Um dos casos que mais me impressionou foi o de uma mulher muito especial que acompanhei durante a pandemia e, como podem imaginar, não poderei entrar em especificações do caso neste texto por uma questão deontológica, mas falarei dele de forma genérica.

Faço-o porque hoje fui entrevistada por uma jornalista, na sequência de uma reportagem feita sobre a história desta mulher e dos abusos sexuais perpetuados durante a infância e adolescência. Ela quis dar o seu testemunho publicamente numa revista de referência, partilhando o processo terapêutico que fez comigo e dizendo: «Hoje estou aqui, feliz.»

A decisão de pedir ajuda para superar as angústias e a tristeza é o primeiro passo, e este pedido foi-me feito através das redes sociais, num dia, em que antes de me deitar, passei os olhos pelas redes e mensagens. Ao contrário do habitual, respondi de imediato ao pedido de informações e, do outro lado, a rapidez da resposta à minha surgiu com uma mensagem de agradecimento e a menção de que não teria condições para pagar os meus honorários. Disse-lhe que não seria por essa razão que não teria uma consulta comigo – combinaríamos uma primeira consulta na semana seguinte e depois logo se veria. A rapidez da sua resposta voltou a acontecer, em forma de agradecimento, acompanhada da descrição da sua história de vida resumida, que li de seguida.

Levei um «soco no estômago». Respondi-lhe que a iria acompanhar, todas as vezes que fossem necessárias até que conseguisse ajudá-la a ser feliz, sem custo e pelo tempo que fosse necessário. Agradeceu-me profundamente e marcámos sessão para a semana seguinte. Nessa noite, adormeci angustiada. Fico sempre angustiada com estes relatos. E se fosse eu? E se fossem os meus filhos, irmãs, amigas, mãe?

A terapia de casal e sexual acabou por ser adiada uns meses, após uma histerectomia radical que, entretanto, teve de realizar, como consequência dos abusos em miúda, e que a aterrorizou, por pensar que esse procedimento a impediria de sentir prazer sexual no futuro, algo que nunca tinha conseguido e que queria muito.

Acompanhei-a através de mensagens ocasionais nas redes durante esse processo, para que se apaziguasse e para que recuperasse sem pressas. Quando estivesse forte, começaríamos a terapia sexual. E assim foi. 

As sequelas de um abuso podem ser muito variadas, refiro apenas algumas aqui, como a aversão sexual, evitamento sexual, desejo sexual hipoativo, despareunia, vaginismo, dificuldade em comunicar intimamente o que se gosta e o que não se gosta, dificuldade em impor limites, e tantas outras situações. Mesmo que a pessoa se sinta bem na sua relação amorosa, nem sempre isso quer dizer que sexualmente se sinta feliz. Muitas vezes prefere fingir que está tudo bem a confrontar-se com a sua dor, perpetuando a sensação de abuso. Nem sempre os parceiros/a se apercebem desta situação, quer por desconhecimento, quer por falta de sensibilidade, fazendo com que a situação de terrorismo íntimo seja cada vez mais difícil de se suportar, interferindo inevitavelmente com a saúde metal e física.

As consultas foram feitas em casal, e pode-se dizer que tiveram um êxito absoluto, não só porque a intervenção ocorreu num tempo recorde, mas pelo facto de termos conseguido atingir todos os objetivos. Ela passou a ter desejo, a gostar do seu corpo, a sentir-se bonita e a gostar de ter intimidade e prazer com o seu marido, a experienciar sensações que nunca tinha conseguido, a experimentar a excitação e o orgasmo numa resposta sexual que a libertou de todo o mal que lhe fizeram. A cereja no topo do bolo foi afirmar que se sentia feliz. Muito feliz. 

Fiquei de coração cheio com o desfecho deste caso e com uma admiração profunda por esta mulher e também pelo seu marido que foi apoiante e compreensivo, como seria necessário. Foi uma terapia dura e de superação e, juntos, o casal encontrou finalmente uma forma feliz de viver a sua sexualidade. 

Muita coisa poderia dizer desta mulher, direi apenas que é uma GRANDE MULHER, com um dos sorrisos mais bonitos que conheço, e que dedicou a sua vida a ajudar crianças a identificarem e defenderem-se de abusos, para que as suas infâncias não lhes sejam roubadas.

O assédio ou qualquer outro tipo de atividade sexual sem consentimento, incluindo toques, carícias, beijos e relações sexuais, são formas de agressão sexual que podem ser consideradas CRIME.
Ligue para o 112 se estiver em perigo imediato ou se tiver sido agredida sexualmente.
Saiba que não está sozinha: 
Linha de apoio à vítima: 116 006 | Chamada gratuita | Dias úteis, 08h–22h
Linha internet segura: 800 219 090 | Dias úteis 08h–22h
Apoio a crianças e jovens vítimas de violência sexual: 22 550 29 57 | care@apav.pt
Unidade de Apoio à Vítima Migrante e de Discriminação: 21 358 79 14 | uavmd@claudiameira
A responsabilidade não é SUA e o que aconteceu foi um CRIME que deve ser denunciado.

-Sobre a Marta Crawford-

É psicóloga, sexóloga e terapeuta familiar. Apresentou programas televisivos como o AB Sexo e 100Tabus. Escreveu crónicas e publicou os livros: Sexo sem TabusViver o Sexo com Prazer e Diário sexual e conjugal de um casal. Criou o MUSEX — Museu Pedagógico do Sexo — e é autora da crónica «Preliminares» na Revista Gerador.

Texto de Marta Crawford
As posições expressas pelas pessoas que escrevem as colunas de opinião são apenas da sua própria responsabilidade.

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