Ainda era um jovem finalista do Conservatório Nacional, quando Edward Ayres de Abreu, juntamente com outros colegas, decidiu avançar com a criação de uma associação. O objetivo era relativamente simples: demonstrar que existia e continua a existir um panorama português dentro da chamada ‘música de tradição erudita ocidental’ e dar-lhe uma visibilidade que fosse dignificante, sobretudo para os novos músicos e compositores que decidiam enveredar pela área.
Mais de uma década depois, o designado Movimento Patrimonial pela Música Portuguesa (MPMP) tornou-se numa plataforma constituída por centenas de músicos do espaço lusófono, reunindo diversos projetos em prol da divulgação da música clássica e erudita. A associação ocupou um espaço perdido entre instituições e cânones, que, pela sua rigidez, nem sempre têm abraçado a mudança e foram ao encontro dos jovens criadores, que ali encontraram uma forma de dar eco às suas criações.
Em entrevista ao Gerador, Edward Ayres de Abreu, presidente do MPMP, fala-nos, então, do que foi e continua a ser a aventura que começou nos finais de 2009, marcada pelo trabalho de redescoberta dos arquivos, tirando da gaveta partituras, muitas delas que não se ouviam há pelo menos um século. Por outro lado, e de olhos postos no futuro, o compositor e musicólogo fala-nos ainda dos desafios que se impõem para os próximos anos, quer no campo da preservação musical, quer na capacidade de dar melhores condições de criação musical à nova geração de artistas que têm surgido, com grande fôlego.
Gerador (G.) – Nos finais de 2009 fundaram o Movimento Patrimonial pela Música Portuguesa (MPMP). Mais de uma década depois da criação deste movimento, que balanço é que fazem da atividade que tem desenvolvido e da missão a que se propunham?
Edward Ayres de Abreu (E. A. A.) – Às vezes, um pouco a brincar, costumo dizer que decidimos criar o MPMP porque ele não devia existir. No sentido em que, se pensarmos bem, acho que não faz sentido existir uma orquestra especialmente dedicada a fazer música portuguesa, nem uma editora especialmente dedicada a gravar ou a promover músicos portugueses. Em princípio, essa devia ser uma missão de toda a comunidade e de todas as instituições musicais portuguesas. Num país ideal, o nosso trabalho devia, na verdade, ser redundante, mas não é. Não é que não haja outras instituições e músicos com projetos fantásticos a lutar para fazer um pouco também daquilo que nós fazemos. Há bastantes, mas quando olhamos para a quantidade de património do passado e do presente que está por gravar, percebe-se que há muito trabalho para fazer. É nesse sentido que nós criamos o MPMP e que desenvolvemos várias atividades para que estas obras, algumas delas verdadeiros tesouros nacionais, e também os compositores vivos e jovens criadores que estão agora a propor-nos novos sons, sejam mais divulgados. Ao fim de 10 anos de atividade regular sentimo-nos, em primeiro lugar, muito felizes porque fizemos muito mais do que aquilo que nós imaginávamos fazer quando criámos a associação. Em segundo lugar — penso que não será muito arrogante dizer —, sentimos que, de certa forma, em alguns contextos a nossa atividade fez mudar certas ideias e preconceitos e fez com que outros músicos e instituições começassem a apostar um pouco noutro tipo de repertório, menos recorrente. Achamos que demos um contributo nesse sentido, nem que seja, por exemplo, através da revista da associação, a Glosas, ou através de uma certa insistência, quase militante diria, em pegarmos em partituras — algumas delas que não se faziam ouvir há 100 ou 200 anos — e mostrarmos que havia ali matéria prima boa para deleitar os ouvintes e para nos surpreender enquanto espectadores da história do nosso próprio país. Foram anos de crescimento a vários níveis, pessoal e como comunidade. Descobrimos muito mais do que aquilo que esperávamos descobrir e esta continuidade deu-nos a certeza de que vale a pena prosseguir e que há muito por fazer ainda.
G. – Eram ainda finalistas do Conservatório Nacional de Música quando decidiram criar o MPMP, já na altura, surpreendidos pela falta de visibilidade de certas obras portuguesas.
E. A. A. – Sim, o núcleo inicial da associação foi formado por colegas do Conservatório Nacional. Eu e o vice-presidente, o Duarte [Pereira Martins], éramos da classe de piano e falávamos disso nos corredores do Conservatório. Os alunos de piano eram obrigados todos os anos a tocar uma peça de música portuguesa. Só que esta peça era a mesma para todos os alunos e era uma espécie de brinde que se fazia. Nós tínhamos um programa muito completo e muito sério no último ano. Tínhamos de tocar uma Grande Sonata, uma série de estudos de virtuosidade, duas ou três grandes peças do repertório, do século XIX ou XX e, depois, havia essa peça um pouco mais fácil do que a média e de dimensões mais reduzidas para cumprir a obrigatoriedade de fazer música portuguesa. Nesse contexto, a obrigatoriedade de fazer música portuguesa é um disparate porque cabe ao professor e cabe também ao aluno escolherem o repertório em função daquilo que querem desenvolver tecnicamente. Esta obrigatoriedade faz com que as pessoas não equacionem sequer a possibilidade da sonata ou daquelas duas ou três peças grandes poderem ser peças de compositores portugueses.
G. – Perpetuando um preconceito.
E. A. A. – Sim, de certa forma. Mas nós olhávamos para estes exemplos que nos faziam pensar. Nesses anos lembro-me muito bem de ver um documentário sobre o terramoto de Lisboa, em 1755, em que a música que acompanhava, se não me engano, eram excertos da “Nona” Sinfonia de Beethoven e creio que ainda algum “Nocturno” de Chopin. O que sei é que eram escolhas completamente descontextualizadas, geograficamente e em época. Nem era música do tempo, nem era música que se ouvia à época do terramoto. E, quer dizer, quando um realizador tem o desafio de fazer um documentário sobre um tema tão específico, acho que há duas hipóteses fascinantes que se abrem: uma é encomendar uma banda sonora original a um compositor vivo, que desenvolva um conceito a partir da matéria em causa e que proponha algo novo; ou então que vá procurar repertório que tivesse uma ligação um bocadinho mais direta com aquela época e com aquele local. E depois comecei a pensar «porque é que um realizador faz isto?». Há muitas razões que o justificam, mas uma delas é óbvia: há uma grande falta de conhecimento sobre nossa própria história da música, imenso repertório que não está sequer gravado, e, sobretudo, uma falta de consciência coletiva sobre isto de música e de som ser também património.
G. – Ainda assim, e perante sinais evidentes dessa falta também de reconhecimento, sentem que, desde então, tem existido vontade de mudar?
E. A. A. – Eu acho que sim e já havia. Nós não fomos pioneiros nisto — é preciso dizê-lo —, nem somos heróis, nem quisemos necessariamente fazer coisas espetaculares que nunca tinham sido feitas antes. Simplesmente esforçámo-nos um pouco mais por, sempre que possível, responder ao ciclo completo daquilo a que eu chamo ecossistema do meio musical que é quando nós, por exemplo, resgatamos uma partitura perdida na Biblioteca Nacional e editamo-la numa edição moderna, disponibilizamo-la para que possa ser repetida por outros músicos, fazemos um concerto com ela e depois do concerto, se possível, disponibilizamos a gravação, seja em CD ou através do nosso canal no YouTube, permitindo que essa obra tenha uma possibilidade de futuro. Muitas vezes, o que acontecia e que acontece ainda, é haver um esforço enorme de algumas instituições em redescobrir uma partitura importante e depois, porque não houve gravação, essa redescoberta não ter eco. É impressionante, por exemplo, que não haja uma gravação de fácil acesso de uma ópera como a Serrana, do Alfredo Keil, que é importantíssima na nossa história. Portanto, acho que nós demos um contributo no sentido de tornar algumas coisas mais acessíveis. Nós tentamos sempre gravar e disponibilizar aquilo que apresentamos em concerto e depois começámos também a editar muitos músicos que vinham ter connosco a pedir por uma plataforma de divulgação, tendo chegado ao fim destes anos com cerca de 50 discos editados.
G. – E a verdade é que foram estabelecendo ligações com as instituições, desde logo com a Biblioteca Nacional de Portugal (BNP), num trabalho que começou pela descoberta de arquivos, de modo a trazer à luz aquilo que estava na sombra. Encontraram muitos desafios neste processo?
E. A. A. – Há um desafio incontornável e extremamente exigente que é a falta de recursos humanos. E, infelizmente, o panorama cultural português é, a este respeito, muito deficitário. A Biblioteca Nacional tem feito um serviço extraordinário em prol do seu acervo e da música portuguesa que lá está guardada, mas, manifestamente, seriam precisos mais meios e mais pessoas a inventariar o que lá está para que nós pudéssemos realmente fazer todo esse trabalho de descoberta. Mas, na verdade, a Biblioteca Nacional acaba por ser um oásis, pelo menos em termos da segurança que assegura o que está lá preservado. Tenho mais preocupações, por exemplo, com os espólios que ainda estão em casa de particulares ou de Bandas Filarmónicas que não têm condições para manter estes materiais adequadamente. Há muita coisa a ser descoberta ou localizada e o facto do MPMP colaborar, desde cedo, com a Biblioteca Nacional foi um privilégio e tem sido um desafio muito estimulante. Mas há aqui uma ideia muito importante que acho que nunca é de mais reforçar: quando falamos de património edificado, estamos a falar de algo que, de alguma forma, está materializado numa estrutura relativamente perene, sendo muito mais visível do que o património musical. As partituras guardadas em gavetas não comunicam. Um turista pode ver o Mosteiro dos Jerónimos, mas não pode ir à Biblioteca Nacional ler uma partitura e deslumbrar-se automaticamente com a música que lá está, porque a partitura é um mero suporte, que precisa de músicos, de musicólogos, de público, de concertos e de gravações.
G. – Quando falam deste ecossistema da música erudita, seria possível para vocês, enquanto movimento, fazer uma contextualização da música portuguesa nesta variante face à centro-europeia, onde a tradição é muito mais reconhecida?
E. A. A. – Essa é uma pergunta para muitas horas de reflexão. De qualquer forma, não estou assim tão certo de que a história da música portuguesa, de tradição erudita ocidental, seja assim tão distante qualitativamente do que se passou no resto da Europa. Evidentemente, Portugal foi a vários níveis um país periférico e continua a ser. Portanto, não é expectável encontrar aqui figuras absolutamente geniais como encontrarmos nos países centro europeus, que tenham tido um impacto histórico mais global. Mas acho que há, ao longo da nossa história, momentos incríveis e compositores tão extraordinários como os criadores dos nossos melhores monumentos na área da arquitetura, das artes plásticas, cinema. E há também, sobretudo da parte da investigação musicológica, algumas lacunas por explorar. Por exemplo, a chamada época de ouro da polifonia portuguesa (séculos XVI e XVII) está relativamente bem estudada. A música contemporânea, apesar de tudo, tem uma certa vitalidade porque há muitos jovens intérpretes a executá-la em concertos. Não digo que os compositores portugueses contemporâneos não merecessem mais oportunidades, porque mereciam, mas apesar de tudo tem havido oportunidades de fazer esta música viver. Depois, há alguns compositores ao longo da nossa história que são um pouco mais conhecidos do que a média, felizmente. Casos como o [Fernando] Lopes-Graça, ou o João Domingos Bomtempo, que foi fundador do Conservatório Nacional. Se recuarmos para o período barroco temos o incrível Carlos Seixas, que é claramente um compositor de topo da sua geração na Europa. Mas depois, o nosso século XIX, por exemplo, é ainda muito pouco conhecido. Há várias razões que o explicam. Tem que ver com alguns preconceitos musicológicos que vêm já desde finais do século XIX e inícios do século XX e que se foram perpetuando. Tem também que ver com uma questão muito prática de, novamente, não haver recursos humanos suficientes para tratar de todo este material. O MPMP tem levado aos festivais de música em São Roque este repertório, que temos dado a descobrir, não apenas obras mas até compositores de quem não ouvimos uma partitura desde o século XIX.
G. – Olhando para o presente, e considerando as primeiras décadas deste século, tem surgido em força uma geração de músicos e compositores que tem construído um catálogo contemporâneo muito interessante. Sentem que há, de facto, uma renovação?
E. A. A. – Eu acho que seria preciso mais distanciamento para avaliar melhor essa transformação, mas sinto que sim. Que há uma dinâmica muito mais interessante entre compositores e intérpretes. Há cada vez mais jovens intérpretes interessados em fazer música diferente — nova ou do passado — que não se inscreva necessariamente no cânone tradicional. Isso é algo que me parece muito importante. É desafiar os cânones. Eu pessoalmente, enquanto espectador e não desfazendo a qualidade incrível de grande parte dos nomes canônicos, sinto-me, às vezes, um pouco cansado de ouvir sempre a mesma coisa e, às vezes, prefiro ouvir uma obra de um compositor de quem nunca ouvi falar do que ouvir pela trigésima vez a mesma sonata do mesmo compositor. E acho que, como eu, há cada vez mais músicos a pensar assim.
G. – Há uma mudança de pensamento nesse nível.
E. A. A. – Penso que sim. Não sei exatamente que razões é que estão por detrás disso. Haverá muitas, seguramente, mas acho que pode haver também o desejo do novo e do diferente, o que me parece saudável. O querer ouvir coisas novas, o querer conhecer melhor a nossa história ou querer viver melhor a nossa contemporaneidade. De certa forma, acho que é um estímulo adicional quando um jovem músico executa a obra de um compositor com quem pode falar diretamente.
G. – É possível destacar, neste ponto, um esforço e uma melhoria das escolas e academias?
E. A. A. – Sim e acho que não há muitas dúvidas em relação a isso. Aliás, voltando atrás, uma das razões para a existência de muita música do século XX que ainda não é conhecida é porque, às vezes, quando nós ouvimos gravações dos anos 40, 50 e até 60, se não temos uma bagagem crítica suficiente para perceber que aquela música pode possivelmente ser muito mais interessante do que parece, facilmente ficamos dececionados com o que ouvimos. Porque, em síntese, as gravações eram péssimas, as orquestras, em geral, eram muito mal preparadas e a qualidade geral dos músicos era muito inferior.
G. – Existem, portanto, fatores que possibilitam um acesso mais fácil a estas obras desconhecidas na atualidade, nomeadamente por parte dos jovens músicos?
E. A. A. – Exatamente e, ao mesmo tempo, eu diria que para as próprias obras e para os próprios compositores é mais fácil hoje serem bem tocados do que seriam à época. Apetece-me até dizer que, provavelmente, para muitos compositores do século XX em Portugal, houve música que apesar de ter sido tocada à época, não o foi verdadeiramente. O que estou a dizer é que pode dar-se o caso de algumas estreias modernas que nós temos vindo a fazer serem, na verdade, estreias absolutas, no sentido em que quando elas foram estreadas, foram-no em condições tão precárias que o resultado musical não deve ter sido sequer comparável com o que será conseguido hoje em dia.
G. – A certa altura decidem enveredar pelo campo da edição. Foi uma forma de estarem ao lado dos novos criadores?
E. A. A. – Nós preocupámo-nos sempre com o fomento deste ciclo, entre obra executada e obra gravada. Mas, obviamente, não começamos logo a editar até porque a associação nasceu e cresceu com um orçamento reduzido. Foi gradualmente e o primeiro disco foi lançado apenas dois ou três anos depois do nascimento da associação. Não obstante, é certo que à medida que nós fomos crescendo, cada vez mais músicos foram pedindo para integrar os seus projetos no nosso catálogo. Mas isso, de certa forma, tem uma razão muito primária e muito infeliz que é o facto do nosso meio musical ser tão pequeno que praticamente não existia outra opção. A editora Numerica, que tinha um grande catálogo, tinha ido à falência, e existem algumas outras instituições que fazem algumas edições mais pontuais… portanto, a verdade é que mesmo hoje em dia, para além do MPMP, não há nenhuma instituição que promova sistemática e regularmente edições discográficas na área da música clássica em Portugal. Agora é claro que, estou em crer, isto também é um esforço nosso de tentar fazer as coisas bem e tentar junto com os nossos meios fazer o melhor por estas gravações. Distribuí-las física e digitalmente, divulgá-las pelos diversos meios de comunicação, ter um cuidado especial com o desenho e com a imagem do objeto físico.
G. – E têm juntado músicos de backgrounds até bastante diversos.
E. A. A. – Talvez também por defeito de formação, tenho uma visão bastante aberta sobre o que é música clássica. E para um compositor, atualmente, estas fronteiras fazem cada vez menos sentido. Daí que, de uma forma geral, sempre nos interessou abraçar desafios menos normativos. Nós movemos-mos, essencialmente, no território da música dita clássica, em sentido amplo. Se quisermos uma definição cientificamente mais correta diríamos ‘música de tradição erudita ocidental’, que é aquela que se transmite essencialmente por via escrita e que descende, conceptualmente, de toda uma genealogia teórica que se desenvolveu no ocidente europeu. Mas acho que quanto mais avançarmos para o futuro, mais flexíveis serão estas barreiras e, pessoalmente, fico muito feliz com essa perspetiva.
G. – Desse ponto de vista, consideram que tem havido uma mudança na forma como as instituições culturais portuguesas olham para este conjunto de criadores?
E. A. A. – De uma forma geral, a música é o parente pobre em muitos contextos das artes. Surpreende-me, por exemplo, que seja notícia de jornal que um grande escritor português seja nomeado ou premiado num certame internacional e que ao mesmo tempo nunca se oiça falar de coisa semelhante para um compositor. O João Pedro Oliveira, que é o compositor português que mais prémios recebeu e recebe, que eu saiba nunca foi notícia de telejornal. Nesse sentido, acho que há muito por fazer e as instituições culturais portuguesas têm muito por fazer. No que diz respeito à música clássica em particular e à forma como ela é programada, eu apostaria mais em fomentar cada vez mais diálogos multidisciplinares. É isso que mais contribui para que se desenvolva a criatividade dos mais diversos agentes da cultura. Entrincheirarmo-nos não nos leva a lado nenhum. Temos todos muito a ganhar quando nos conhecemos uns aos outros e quando fazemos coisas mais diversas. Na música clássica, podemos notar na convivência diária, que há muitos compositores portugueses que não sabem exatamente o que estão a fazer os musicólogos portugueses, seus contemporâneos, e vice-versa. E há muitos jovens músicos portugueses que terminam os seus cursos superiores sem saberem exatamente o que é que uns e outros estão a fazer. E apesar de todo este cenário estar a melhorar imenso nos últimos anos, como já dissemos, há muito ainda por fazer, sendo que esse diálogo deve ser fomentado rapidamente.
G. – Finalmente, está também em execução, a criação do aguardado Arquivo Nacional do Som. Como olhas para esta estrutura e o que achas que pode mudar?
E. A. A. – Acho que é uma estrutura essencial. Estou muito curioso e muito expectante com o que poderá resultar desta equipa instaladora. É constituída por excelentes profissionais e, portanto, tenho as melhores perspetivas. É claro que estas perspetivas poderão colidir depois com a capacidade política de levar isto a cabo. Mas acredito que há essa vontade, sendo que é um projeto fantástico e urgente. É importante, desde logo, porque, como disse, a música e o som em geral também são património. É importante que os portugueses comecem a ter esta ideia amadurecida dentro deles. É tão património como é a Torre de Belém ou como é uma tela dos Painéis de São Vicente, por exemplo. No caso da música erudita, a preservação das partituras é uma das dimensões importantes dessa vida patrimonial, mas o som, enquanto elemento gravado é também uma dimensão de fulcral importância. Eu falei antes do facto de haver, ao longo das últimas décadas, muitas instituições que se esforçam por recuperar partituras importantes da nossa história, mas que depois, por alguma razão, não conseguem levar a cabo uma sobrevida e não conseguem que essa gravação seja disponibilizada. Neste sentido, um Arquivo Nacional do Som pode ser uma oportunidade para se preservar, por exemplo, as gravações destes concertos que, de outra maneira, se perderiam, porque muitas destas instituições não têm capacidade técnica para armazenar este tipo de material.
G. – Mas dirias que terá de haver por parte deste futuro arquivo sempre essa perspetiva não apenas de irem resgatar partituras, mas também de promover a sua possível gravação?
E. A. A. – Acho que não compete ao Arquivo Nacional promover. Para promover estamos nós, estão as entidades de programação, mas compete-lhes garantir que o que resulta deste esforço de gravação é mantido. Compete-lhes salvaguardar o património gravado e assegurar, por exemplo, o depósito legal dos discos que são produzidos. Da mesma forma que a Biblioteca Nacional assegura o depósito dos livros que são produzidos em Portugal. Mas este arquivo, em princípio, deve ir muito para além dos discos e é por isso, e muito bem, que se chama Arquivo Nacional do Som e não Arquivo Nacional da Música.
G. – Se bem que haverá o desafio de lidar com espólios que ainda são privados e torná-los de acesso público.
E. A. A. – E para que passem também a estar salvaguardados num espaço que ofereça segurança e capacidade técnica para manter as gravações estáveis. Porque de outra forma é um risco muito grande. Estamos continuamente a perder repertório.
G. – Nestes últimos anos tem existido também o debate de se mudarem certos códigos que regem a música clássica, para que esta possa chegar a novos públicos. Depois deste ciclo inicial do MPMP, que desafios é que achas que serão importantes para os próximos anos?
E. A. A. - Acho que a ideia de que a música clássica está a morrer é recorrente há bastante tempo e, de certa forma, é mitológica. Mas isto não exclui a importância de repensarmos a forma como esta música se faz, pela simples razão de que tudo à nossa volta está a repensar-se. Tudo à nossa volta está a mudar, tecnologicamente, socialmente e há nisso aspetos positivos e negativos. Mas, perante esta realidade de mudança, seria naturalmente suicida continuar a fazer sempre a mesma coisa da mesma forma. Claro que isto não deve ser exclusivamente um desafio da música clássica. É um desafio fascinante e transversal a todas as artes e acho que os jovens músicos e compositores têm aqui um terreno muito fértil de exploração de novas soluções. E acho que devemos todos esforçarmo-nos para explorar esse território em constante mudança. É difícil, porque todos nós temos sempre uma certa inércia e o mundo da música clássica rege-se por uma série de rituais muito bem estabelecidos historicamente, mas é também por isso que considero o desafio ainda mais fascinante. Em relação ao MPMP, a verdade é que desse ponto de vista, nós não fizemos nada de extraordinariamente ousado nos últimos anos, mas é sem dúvida uma preocupação que nos motiva e eu espero que este novo ciclo ofereça algumas soluções diferentes. Houve muitas experiências interessantes nos anos 70 e 80 que, em certo sentido, perderem algum fôlego. Se nós nos lembrarmos por exemplo do que faziam o Jorge Peixinho e a Constança Capdeville e se olharmos agora para o que fazem os compositores portugueses, em geral, notamos que, de certa forma, havia nos primeiros um pouco mais de chama e de ousadia. E, portanto, espero que o MPMP neste novo ciclo consiga cativar os compositores portugueses a continuarem a explorar novas soluções.