Organizam-se os últimos detalhes do cenário de festa, com uma mesa recheada de frutas, batatas fritas, um bolo e vinho, enquanto se afinam as vozes para o que aí vem, no embalo de uma música tradicional russa. As 3 irmãs de Anton Tchékhov, Olga, Masha e Irina, encenadas por Ana Sampaio e Maia, Joana Cotrim, Rita Morais, com a direção de David Pereira Bastos, são, agora, num ensaio de imprensa e com estreia marcada para o próximo dia 11, estando em exibição até dia 20 de dezembro, presença assídua no Teatro do largo em Lisboa.
O elenco conta ao Gerador as “expectativas de vida de três jovens mulheres, o desgaste dessas mesmas expectativas ao longo do tempo, o sonho, o idealismo, frustração e vontade de mudança, o condicionamento das circunstâncias de vida, o amor como desejo de escape e de resolução de ambições”, como também o processo de recriação de uma intimidade entre estas mulheres num cruzamento com o presente, de 120 anos de distância do passado, em que o coaching , mindfulness, o feminismo, a homossexualidade e até Santo António passam a fazer parte dos assuntos debatidos na mesa que “ninguém tem vontade de arrumar”.
Gerador (G.) – Qual é a relação destas 3 irmãs com as 3 irmãs de Tchékhov?
David Pereira Batos (D.P.B.) – As 3 irmãs do Tchékhov são o ponto de partida do trabalho, aquilo que está aqui feito é o levantamento de um universo, de uma intimidade entre três mulheres que, neste caso, são irmãs, a partir da ideia das personagens da Irina, Masha e da Olga. Muito focados no perfil de cada uma dessas personagens, tentámos recrear este momento e, também, a partir da ideia do inicio da peça de Tchékhov, que é a festa de aniversário da Irina, criar um pretexto para um reencontro entre estas três irmãs e este expediente do jogo “verdade ou consequência” para, nesse reencontro, começarem a fazer perguntas, aprofundar coisas que já sabiam, indagar coisas que não sabiam umas sobre as outras e falar sobre assuntos que foram, mais ou menos, retirados de uma leitura, de uma análise do texto do Tchékhov, coisas como os sonhos, perspetivas de vida, a maneira como as expectativas depois têm desenvolvimento e podem, ou não, derivar em desilusões. A cena final das velhinhas, dentro de uma aceitação, um jogo “semi-teatral”, uma brincadeira entre elas, permite olhar para estas três figuras e para estas ideias em retrospetiva.
G. - Estamos a falar de uma peça sobre mulheres escrita por um homem. Que impacto acham que existe, também, estar um homem na direção do espetáculo?
D.P.B. – A proposta dramatúrgica parte de uma proposta que eu lanço à Joana, à Rita e à Ana que incluía esta coisa de pensar algo como a identidade feminina ou o papel da mulher na sociedade até conseguirmos abordar ou estabelecer uma análise comparativa, não muito profunda, entre as três irmãs do final do século XVIII e os tempos de hoje. A mim, agrada-me muito enquanto homem, é uma coisa sobre a qual tenho curiosidade e suscita-me interesse. A vontade de criar este projeto aconteceu durante o processo de um espetáculo anterior onde nos conhecemos, em que eu entrei como ator e era dirigido por elas. A partilha de uma intimidade feminina que pode ser olhada quase como um privilégio, de poder assisti-las a falarem e estarem umas com as outras e não esconderem assuntos ou modos de falar porque eu sou homem. Há quase uma espécie de gosto, interesse ou curiosidade voyeurista de um homem ver como as mulheres funcionam quando estão sozinhas e creio que isso não está patente no espetáculo.
Rita Morais (R.M.) - Acho que o que acontece aqui é, de alguma maneira, nós transportarmos esta curiosidade do David para um estar em cena e um criar de material sem essa preocupação de “somos mulheres e, por isso, existem determinadas restrições que são socialmente impostas” e isto é perigoso, o que vou dizer…como se esta peça tivesse, eventualmente, qualquer coisa de feminista sem nunca o ser, o que acaba por ser a forma deste grupo ser feminista e se posicionar sobre este tema inclusive o David e, portanto, acaba por haver esta ligação.
Apesar de sermos atrizes, nós também somos criadoras e isto acabou por ser um trabalho muito colaborativo e este homem que dirige chega depois, porque nós acabamos por nos impor, mas isso enquanto gesto saudável e não como uma coisa que não era suposto. Esta relação entre nós e as três irmãs da peça é como se houvesse seis mulheres à mesa, e, portanto, cada uma de nós se posiciona em relação à sua personagem e tem sempre um ponto de vista sobre ela. Em vez de estarmos a ajustarmo-nos sobre estas figuras, estamos a dialogar com elas como se de outra pessoa se tratasse e acho que isso é uma das marcas mais evidentes deste trabalho.
Joana Cotrim (J.C.) - Quando o David faz esta proposta apresenta-nos uma pequena sinopse a dizer o que lhe interessa e a relação do texto connosco, as temáticas do texto era o que interessava e eu respondo que aquilo que me deu uma espécie de sensação de suporte era o facto deste texto existir e de nós estarmos independentes disto. É como se pudéssemos optar por tomarmos os nossos riscos, em termos daquilo que queremos dizer, que pode ir do banal ou não, mas o texto servir como uma espécie de boia de salvação. “Se eu puder voar muito alto, eu não só tenho o texto, mas também tenho o David” e isso deu-me um certo conforto. Isto acabou por ser muito democrático, sem hierarquia e, portanto, não sinto, de uma forma muito nítida, um homem a dirigir três mulheres, até porque o interesse foi prévio a um diretor e três atrizes. Era de quatro amigos com muita curiosidade uns nos outros, porque, de uma forma muito intuitiva, acabámos por darmo-nos muito bem.
G. - O que veem de feminista nesta peça?
R.M. - Acho que há uma exposição destas três mulheres que não é polida e não contempla o dito olhar do homem ou que, de alguma maneira, pensando na peça original onde há homens, aqui já não há homens e eles não fazem falta e acho que isso é bastante feminista. É tudo uma espécie de grito baixinho de que estamos aqui e bastamo-nos umas às outras. Mas sobre esta coisa de sermos mulheres, é difícil falarmos sobre isto sem parecer uma coisa banal. De facto, é pensar que coisas é que nos interessam e nos preocupam cotidianamente, mais ou menos profundas, e trazê-las mesmo para a mesa sem reservas. É uma espécie de radiografia do momento em que cada um de nós está. É um ponto de situação da nossa vida artística com muitas restrições, porque, de repente, chega o David e propõe-nos uma coisa em concreto. Estas questões só podiam surgir neste grupo e com este atrito que as três irmãs nos dão. As três irmãs geram-nos um desconforto qualquer que nos faz falar, seja para concordar ou para discordar, estão aqui como uma “rampa de lançamento” para nós discursarmos sobre tudo isto e para nos emocionarmos, impormos, zangarmos e entusiasmarmo-nos. É o centro e nós gravitamos em volta dele e, às vezes, “calcamo-lo”, como se diz no Norte (risos).
D.P.B. - Havia alguma intenção em tentar ter uma abordagem jocosa com a perspetiva machista dos homens, lidar com ela como uma visão primária e antiquada. A cena em que cada uma delas faz três caricaturas do homem, quando comentam a frase da peça de Tchékhov — “Quando os homens filosofam temos a filosofia ou a sofistica e quando as mulheres filosofam temos o caldo entornado e é como se tivessem a uivar à lua” — e, de repente, tens as três a discorrer sobre este enunciado que é mais ou menos coloquial e corriqueiro, ou a questão de existir uma das personagens em que se percebe que é lésbica, portanto, são várias maneiras dentro de uma determinada subtileza de descartar a necessidade do homem enquanto o paradigma do companheiro romântico que se deseja. A proposta que eu lhes lancei incluía nós conseguirmos abordar uma série de questões que estão na ordem do dia, mas sem entrarmos em citação de discurso teórico ou entrar num discurso já reivindicativo, político ou panfletário, mas que se quer de uma forma mais natural. Houve alguma bibliografia de consulta, no nosso processo de trabalho estivemos a ler alguns excertos do livro Segundo Sexo, da Simone de Beauvoir, e foi muito giro vermos as reações delas.
Ana Sampaio e Maia (A.S.M.) - Quando começámos a falar sobre este tema, não sei se talvez pela minha orientação sexual ou não, havia coisas para mim que não eram uma questão. Os homens têm a importância que têm, mas não exercem nenhum poder sobre mim do ponto de vista que acredito que grande parte das mulheres do mundo ocidental sintam, porque, se calhar, tive a felicidade de nunca na vida me ter deparado com situações em que tenha sentido essa força altamente negativa sobre mim, isto para dizer que, há maneiras de estar e de pensar altamente diferentes mesmo dentro da nossa geração, que faz como que passe a ser uma questão se coloco em cena a pergunta “ele gosta que lhe metas o dedo no cu?”, não ficou esta. Aquilo que o David estava a falar sobre a naturalidade, intimidade de três mulheres em conversa, de repente, passou a fazer grande sentido por perceber que havia efetivamente grandes restrições da parte deste corpo de atrizes.
G. - 3 irmãs é uma obra que vos obriga a pensar em que questões?
J.C. - Como o tempo nos pesa. O tempo é uma coisa que me faz sentir subjugada e que tenho de concretizar uma série de coisas antes que passe. Acho que me sinto velha desde os vinte e dois anos, não sei porquê, mas sinto que tinha de concretizar uma série de coisas, de ter sucesso ou ser feliz e chega um momento em que percebemos que não vai acontecer tudo o que imaginávamos que ia acontecer aos 19 ou 20 e há um modelo de vida que as pessoas podem ter.
R.M. - A peça tem esta ligação com o tempo, com esta expectativa de que as coisas foram más e dali para a frente encontram solução sempre num futuro que não chega, e eu acho que nós enquanto sociedade, vivemos, de facto, com esta angústia de querer sempre ir para Moscovo, mas nunca chegar a ir, e, neste sentido, a peça é absolutamente atual. Apesar de tudo, ainda estamos a ganhar distância, porque fechámos o guião muito recentemente, mas dá-me impressão de que há momentos na peça que a pessoa se vai confrontar com determinados estereótipos, preconceitos e pensar “eu não faria isto na vida real”. Nós tentámos que cada um fosse para casa e se obrigasse a resolver as suas questões.
A.S.M. - Eu acho que faço teatro, e neste caso, para colocar as coisas em questão mais do que hastear bandeiras ou cartazes à frente da assembleia. Neste espaço e neste tempo eu sinto-me responsável por colocar coisas em questão tendo sempre atenção e muito cuidado para não ser moralista e por isso é que somos três, que assim como as 3 irmãs da peça, e nós reforçamos isso de termos sempre bastante cuidado de darmos pelo menos três pontos de vista, e por isso, independentemente do que são feitas as pessoas que vierem ver este espetáculo, e espero que venham, acho que cabem todos aqui.
D.P.B. - As questões que me surgiram foram sobretudo do foro do trabalho e da criação. A mim, obrigou-me mais a pôr-me naquele lugar de, “a partir de que ponto é que eu tenho de intervir de uma forma taxativa”, e nesse diálogo levantam-se questões da diferença de idades, experiencia e até o facto de eu ser homem e elas mulheres, mas, a mim, põe-me num sítio generoso, num sítio que me devolve coisas. Uma das minhas grandes vontades de fazer este projeto com elas é perceber onde é que eu estou neste contexto da luta feminista. Eu posso dizer que sou feminista, mas em confronto com situações práticas revelar-se o oposto. Tem a ver com por à prova aquilo que acho que penso sobre a questão e obrigar-me a pôr-me em causa.