Em 1975, Sophia de Mello Breyner, então deputada eleita pelo Partido Socialista, fez a seguinte intervenção na Assembleia Constituinte, em defesa da cultura: “(…) Num país e num mundo onde há famílias sem casa e doentes sem tratamento e sem hospital a questão da liberdade de criação artística e intelectual pode parecer uma questão secundária. Mas sabemos que a cultura influi radicalmente a estrutura social e a estrutura política. E por isso a questão da liberdade da cultura é uma questão primordial, pois a cultura não é um luxo de privilegiados mas uma necessidade fundamental de todos e de todas as comunidades. A cultura não existe para enfeitar a vida mas sim para a transformar (…)".
Sophia considerava que a cultura era determinante na transformação da sociedade e na libertação dos seres humanos. A luta pela importância deste sector tem continuado ao longo das últimas décadas, apesar de sucessivos cortes e abandono por parte de muitos governos.
Hoje uma das grandes preocupações, para além da sobrevivência deste sector, é a sobrevivência dos seus próprios trabalhadores, sem os quais a cultura não poderá continuar a existir. Foi claro durante este período de confinamento a importância da cultura para alimentar o nosso espírito, devolver-nos quem somos individualmente, e enquanto país. Ao mesmo tempo que a sua importância se tornava cada vez mais palpável, os seus trabalhadores eram tratados de forma inqualificável por parte do Ministério da Cultura, que apenas na semana passada, ao mesmo tempo que anunciava o retomar da actividade cultural, tornava públicos os resultados dos únicos apoios aos trabalhadores da cultura desde o início do confinamento. Nota-se que, curiosamente, este concurso tinha como um dos objectivos financiar projectos realizados durante o período de quarentena, mas os resultados saem apenas agora, uma vez o período de quarentena obrigatória terminado.
Nas últimas semanas, centenas de artistas encheram as redes sociais com fotografias em branco. São perfis, capas e publicações em branco seguidas do hashtag "Pelo Presente e Futuro da Cultura em Portugal”. Mais recentemente, na última semana, milhares de artistas assinaram uma petição em defesa da cultura em Portugal, e voltaram a mobilizar-se, ao publicarem uma fotografia sua a segurar um cartaz com esta mesma frase.
Esta acção faz parte de um movimento organizado pela Acção Cooperativista que junta artistas, técnicos e produtores, e que pede uma resposta eficaz aos problemas que assolam os trabalhadores da cultura. Surge, em primeiro lugar, como resposta às medidas do Ministério da Cultura, que até agora se mostram insuficientes, e que chegam dois meses e meio após a paragem do sector, deixando os trabalhadores da cultura à fome e sem protecção social. E, em segundo, como resposta à fragilidade crónica deste sector, que neste período se tornou mais visível.
Os trabalhadores da cultura têm exercido a sua actividade sem qualquer proteção social. Mantendo a sua actividade de forma intermitente (com intervalos desiguais), característica deste trabalho, os trabalhadores deste sector não encaixam nos parâmetros previstos para a protecção dos trabalhadores independentes. Esta intermitência de que falo não significa escassez de trabalho neste sector, trata-se de uma característica própria do funcionamento do trabalho na área artística. Por exemplo, é comum os trabalhadores desta área passarem três meses num projecto, onde trabalham, muitas vezes, com uma carga horária acima da média, para depois, pararem um mês e recomeçarem um projecto da mesma natureza no mês que se segue. Uma das medidas fundamentais pelas quais luta este movimento é o estatuto de intermitência para os trabalhadores das artes, medida adoptada em muitos outros países europeus.
É também cada vez mais frequente, os trabalhadores da cultura serem pagos por várias entidades, e de forma irregular. Este é outro factor, além da intermitência, que faz com que os trabalhadores da cultura não sejam abrangidos pela proteção social. Frequentemente os pagamentos são feitos a trinta ou até a noventa dias, após a data em que o trabalho foi realizado. Desta forma, a actividade artística (irregular) não cabe dentro dos parâmetros previstos para a obtenção de apoios da segurança social, nomeadamente subsídio de desemprego, licença de maternidade, etc.
Com esta pandemia, a fragilidade do sector tornou-se mais evidente, pondo em causa a sobrevivência de muitos dos trabalhadores da classe artística e, também por isso, da cultura enquanto sector.
Este movimento reivindica uma resposta à crise que enfrentamos provocada pelo Covid-19, mas também a revisão dos direitos laborais dos seus trabalhadores em função das suas necessidades específicas.
Esta luta pela defesa da cultura não é apenas a luta pela sobrevivência de um sector ou dos seus trabalhadores, mas sim por um direito de todos os cidadãos à cultura. O movimento convida todos e todas a juntarem-se a esta causa, que reclama o presente e o futuro da cultura em Portugal.
*Texto escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico
-Sobre a Isabel Costa-
Trabalha em teatro, cinema, na área de produção de exposições e curadoria. É diplomada em teatro pela Escola Superior de Teatro e Cinema, tendo completado a sua formação na Universidade de Warwick (Inglaterra) e na UNIRIO (Brasil). É membro do grupo de teatro Os Possessos desde 2014. Na área de produção de exposições passou pelo Paço Imperial no Rio de Janeiro (Brasil), pela Galeria Luis Serpa Projectos (Lisboa) e pela galeria Primner. Em 2016 terminou o mestrado Eramus Mundus Crossways in Cultural Narratives, tendo passado pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas na Universidade Nova de Lisboa, pela Universidade de Perpignan (França) e pela Universidade de Guelph (Canadá). Dedicou-se ao tema do arquivo na performance arte. Em 2017, iniciou a criação de projectos a solo. Apresenta a criação “Estufa-Fria-A Caminho de uma Nova Esfera de Relações” na Bienal de Jovens Criadores, e a primeira edição do Projeto Manifesta, um projecto produzido por Os Possessos. Em 2019, apresenta as criações “Maratona de Manifestos” e “Salão Para o Século XXI.”