A terceira vaga chegou, não sem aviso, e com ela o colapso dos serviços assim como dos corpos. Sim, são corpos que se amontoam em todos os hospitais e que se escondem das câmaras e do horror da mais brutal realidade.
Mas esses corpos têm nomes, embora sejam tratados como números. E isto é duplamente nefasto. Em alguns países, a primeira acção oficial e mediática do dia é dizer, em voz alta, os nomes dos que pereceram. Não interessa o tempo que levar. É o que for. É o que é preciso. Cada pessoa é mencionada, nomeada, existiu. Morreu. Ajuda quem lhes ficou e perpetua quem nos deixou.
Por outro lado, quem apenas diz e mostra números e gráficos conta apenas parte da história daquelas pessoas que ficam sem rosto e sem memória. E esta acção, ao longo dos dias e meses, faz crescer a indiferença. Sim, é mesmo duplamente nefasto.
Acrescente-se o cansaço, evidente, das pessoas que não foram ensinadas a viver com uma pandemia, num país como Portugal que teima em não comunicar clara e claramente o que se passa, o que ajuda à iliteracia sobretudo em relação à saúde mental e psicológica. Chamam-lhe “fadiga pandémica”.
Fui confrontada esta semana com mensagens de voz de uma pessoa conhecida que apenas pedia para termos cuidado porque tem medo da morte. Não sai de casa há um ano e tornou-se obsessivo-compulsivo. Contou-me que nesse dia lavou as mãos 36 vezes. Em casa, sem risco, e fora do mundo. Trinta e seis vezes!
Os chavões populares ajudam à displicência com que muitos abordam o perigo: perdido por 100 perdido por mil, se tiver de acontecer acontece na mesma, até a lei de Murphy é evocada — a metade do pão que foi barrada com manteiga é a que cai no chão.
Na verdade, existe o fatalismo tão português, a que também chamamos fado, que nos tolda a razão e nos tira resistência dia após dia.
Podia ser diferente? Podíamos ser diferentes? Afinal, demonstrámos resiliência no primeiro confinamento, faz quase um ano. Fizemo-lo conscientes de que poderíamos baixar a curva, o que conseguimos. Mas depois veio a segunda vaga e a resistência não é a mesma. Pior, chegou a terceira, bem mais forte, que nos esgotou essa mesma resistência.
Quais são as razões por trás deste comportamento quase geral? Há a falta de disciplina que nos caracteriza. Com ela a falta de respeito cívico. Mas não podemos apontar o dedo apenas a estas causas.
Os efeitos de um tipo de educação antiquado e um sistema de ensino ultrapassado, porque ainda expositivo, cansativo, quase como se fosse um exercício de memória, são acompanhados por um estilo de vida dos pais que já não o podem ser devido à sua vida totalmente preenchida com afazeres profissionais de toda a ordem e feitio. Principalmente em teletrabalho, pois nunca aprendemos a fazê-lo e a viver com este processo. Portanto, confundem-se os horários e o cansaço acumula-se.
Esta ausência oferece aos jovens uma nova e diferente liberdade que nenhuma outra teve mas que, em vez de lhes transmitir confiança e força para encarar a vida fora de casa, provoca o seu contrário. E em vez de procurar soluções, mesmo em tempo de desemprego e enorme falta de oportunidades acima do nível ordenado mínimo-com sorte, é mais fácil continuar a viver em casa dos pais.
E nestas, a conversa diária às refeições foi substituída por televisores ligados e chats online. E o que se vê nesses televisores? Números, boletins e gráficos, num mono tema que já tem um ano. Claro, e o santo futebol, passatempos ou reality shows para alimentar o vazio.
O panorama de caos não se vive apenas nos hospitais. Começa na educação e expande-se nos agregados familiares. Há que ser lesto para alterar este status quo porque, quer queiramos quer não, psicologicamente estamos a ser afectados como nunca o fomos, porque é em grupo desta vez. O famoso rebanho que vai ter de ser acompanhado e tratado com muita resiliência a médio e longo prazo, porque sem saúde mental não há saúde física que nos alente.
As doenças psicológicas têm nomes. Tal como nós. Não se deixem esquecer e procurem ajuda quando perceberem uma ligeira, pequena diferença de humor ou comportamento. E sim, o cansaço e a tristeza fazem parte dessa alteração.
Hoje é um bom dia para começar a desabafar com um amigo, um familiar, alguém que nos conheça e nos possa aconselhar. Nem sempre é o necessário ou suficiente. Para isso, há sempre pelo menos uma linha de ajuda psicológica. Há terapeutas, psicólogos, conselheiros que praticam consultas online. Pedir ajuda é reagir. É importante. Pela nossa saúde.
*Texto escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico
-Sobre Ana Pinto Coelho-
É a directora e curadora do Festival Mental – Cinema, Artes e Informação, também conselheira e terapeuta em dependências químicas e comportamentais com diploma da Universidade de Oxford nessa área. Anteriormente, a sua vida foi dedicada à comunicação, assessoria de imprensa, e criação de vários projectos na área cultural e empresarial. Começou a trabalhar muito cedo enquanto estudava ao mesmo tempo, licenciou-se em Marketing e Publicidade no IADE após deixar o curso de Direito que frequentou durante dois anos. Foi autora e coordenadora de uma série infanto-juvenil para televisão. É editora de livros e pesquisadora. Aposta em ajudar os seus pacientes e famílias num consultório em Lisboa, local a que chama Safe Place.