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Em que mulheres escolhemos acreditar?

Fotografia da cortesia de Maria Castello Branco

Em 2018, o jornal britânico The Sun publicava uma notícia que denunciava Johnny Depp como um “wife-beater”. O High Court britânico havia decidido que Amber Heard havia sido vítima de violência doméstica, e Depp viu o seu pedido para uma reconsideração do caso ser negado pela justiça.

Amber Heard escreveu um artigo para o Washington Post no qual descrevia ter sido vítima de violência doméstica. Apesar de nunca ter nomeado o agressor, Depp processa-a agora por difamação, num caso mediático que tem dado origem a uma campanha online a favor de Depp (o hashtag #WeJustDontLikeYouAmber é um exemplo entre muitos outros). Independentemente das provas apresentadas em tribunal, as redes sociais contam outra história. Independentemente dos detalhes partilhados por Amber sobre o abuso que sofreu durante anos (já provado em Tribunal anteriormente), o mundo que a ouve parece odiá-la. Porquê?

A reação pública ao caso de Depp vs Heard 2.0 é um caso de backlash contra o movimento #MeToo. A reação nas redes sociais é de ódio, e é reproduzida por muitas mulheres que decerto não se considerarão anti-feministas, que até serão capazes de dizer, convictamente, que devemos acreditar em todas as mulheres — menos nesta. Não são elas que estão a danificar o movimento, é Amber Heard, porque Amber Heard é uma vítima imperfeita. Mas as vítimas perfeitas nunca precisaram do feminismo, porque não existem.

Amber Heard tem sido descrita como uma mulher histérica, mentirosa, instável, entre outros nomes, cada um com a sua carga de misoginia. É, na verdade, uma bruxa. A consequência é uma mensagem inevitavelmente amplificada pelos holofotes e dirigida a todas as sobreviventes de abuso — “estás certa de que não mereceste? Tens a certeza de que não estás a exagerar? Tens a certeza de que queres falar?”

É de notar que as vítimas de violência doméstica e abuso sofrem, normalmente, daquilo que Miranda Fricker intitulou, no ensaio Powerlessness and Social Interpretation, de um tipo de injustiça epistémica. A injustiça hermenêutica, como o próprio nome sugere, marca a impossibilidade de interpretar uma certa experiência, devido aos preconceitos estruturais nos recursos hermenêuticos colectivos. Estes recursos colectivos, da sociedade, são tão fortes, e a possibilidade de uma compreensão alternativa é tão solitária e inarticulada, que estes recursos têm o poder de construir não só a experiência individual, mas a própria identidade da vítima.

A terapeuta do casal disse em Tribunal que este era um caso de “abuso mútuo”, um termo que descreve uma relação tóxica que danifica as duas partes envolvidas. Heard admitiu, de facto, ter sido violenta, tal como Depp. Mas este termo não pode deixar de ser alarmante: descrever a relação abusiva entre um homem e uma mulher como tendo sido abuso mútuo ignora as relações de poder existentes a priori (é de notar que o género é uma componente fortíssima nestes casos: a vítima é quase sempre mulher). Abuso é, sobretudo, acerca de um desequilíbrio de poder e de controlo, é sobretudo um padrão de comportamentos coercivos e/ou violentos por parte de uma pessoa para ganhar controlo sobre a outra. A estratégia de denunciar um caso de violência como tendo sido um caso de abuso mútuo permite que a parte abusiva consiga transferir a culpa para a vítima. Aliás, como os estudos demonstram, o termo é, sobretudo, usado como forma de manipulação e de culpabilização da vítima. A resistência à violência não é abuso. As sobreviventes de violência doméstica podem demonstrar comportamentos agressivos, mas não é abuso mútuo: é abuso reactivo. É resistência à violência.

O termo abuso mútuo precisa de ser entendido no contexto da desigualdade de género. Falar de reciprocidade implica falarmos de igualdade de circunstâncias. E é difícil falar de igualdade numa sociedade que se baseia, ainda, em desigualdades estruturais entre homens e mulheres, onde o sexismo e machismo ainda prevalecem.  É preciso relembrar, também, que a estratégia de “tu também me bateste” é usada para tentar silenciar as sobreviventes de violência: estima-se que menos de 1 em cada 5 mulheres que experiencia violência doméstica venha a reportar o crime às autoridades. Uma das razões revela-se óbvia quando assistimos às repercussões que Amber Heard tem sofrido: as vítimas receiam que ninguém acredite nelas.

No artigo que deu início a este processo, Amber Heard escreveu que, depois de se divorciar, sentiu a força da raiva e indignação da nossa cultura contra as mulheres que decidem falar. Mesmo depois do #MeToo, mesmo depois de tantas mulheres se terem pronunciado sobre o abuso de que foram vítimas, mesmo depois de as estatísticas indicarem que 1 em cada 3 mulheres será vítima de violência por parte de um homem, depois de as estatísticas demonstrarem que a probabilidade de uma mulher ser vítima de violência é maior do que a probabilidade de ser vítima de guerra, cancro ou de um acidente de automóvel, a credibilidade da vítima é, ainda, demasiado frágil. É importante que não se perca de vista a questão principal que este caso representa: o quão difícil é, ainda, para qualquer sobrevivente, ter voz.

Sobre a Maria Castello Branco -

Está a fazer um mestrado em Londres, na London School of Economics and Political Science, onde se foca em teoria política, nas críticas ao pensamento racionalista e no pós-liberalismo. Estudou Ciência Política e Relações Internacionais no Instituto de Estudos Políticos da UCP. Fez parte da Comissão Executiva da Iniciativa Liberal. Feminista. 

Texto de Maria Castello Branco
Fotografia da cortesia de Maria Castello Branco
A opinião expressa pelos cronistas é apenas da sua própria responsabilidade.

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