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Em terras Murtoseiras, há um projeto que luta pela inclusão de jovens autistas

Banqueta Azul é um projeto que nasceu na Unidade de Autismo do Agrupamento de Escolas…

Texto de Ana Margarida Paiva

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Banqueta Azul é um projeto que nasceu na Unidade de Autismo do Agrupamento de Escolas da Murtosa, no distrito de Aveiro, e, atualmente, é um ateliê de restauro de móveis. Quem lá trabalha são jovens com necessidades especiais, que, neste espaço, encontram amor e, acima de tudo, a possibilidade de construírem o seu futuro.

Em 2020, um ano marcado pela pandemia, Samantha Alavoine descobriu um gosto especial pela estilização e recuperação de móveis, até então seu desconhecido. Sendo mãe de dois pares de gémeos, considera que este interesse "nasceu de uma necessidade". Com as filhas mais novas a crescer, o berço passou a ser descartável, tornando-se uma urgência arranjar espaço para toda a família. "Mesmo optando por algo mais acessível, tornava-se dispendioso para nós, era muito dinheiro", afirma Samantha, fundadora do projeto Banqueta Azul. Posto isto, juntamente com o seu marido, decidiu reaproveitar a sua cama de solteira. Samantha lembra que "não gostava da cor" e tudo começou a partir daí. O primeiro passo passou por dar uma nova cor àquela cama desusada e, desde então, nunca mais conseguiu parar, transformando-se numa atividade terapêutica em pleno confinamento. "Quando já tinha pintado aquilo que precisava, nasceu aquela necessidade de pintar mais e mais, tornando-se também num vício", recorda ainda.

Samantha passou a pintar para amigos, familiares e acabou por levar este gosto para a CAA – Valência de Autismo do Secundário (integrada na rede de Unidades de Ensino Estruturado para o Apoio à Inclusão de Alunos com Perturbações do Espetro do Autismo) do Agrupamento de Escolas da Murtosa, no distrito de Aveiro, onde é professora. Neste espaço, também conhecido como Unidade de Autismo, Samantha Alavoine criou o projeto Banqueta Azul, promovendo a participação de alunos com perturbações do espetro do autismo nas atividades curriculares.

Vasco, Marco, José, Francisco e Sara, todos dentro do espetro autista, com idades que variam de quinze a dezoito anos, ganharam uma oportunidade de fazer a diferença, em plena sala de aula, através da Banqueta Azul. "Nesta fase, o que se pretende é realmente tentar encontrar uma vocação para prepará-los para a vida pós-escolar. Nesta perspetiva, eles são obrigados, a partir dos 16 anos, a fazer um PIT (Plano Individual de Transição/Estágio) e, como havia restrições por causa da covid-19, foi necessário encontrar uma atividade dentro da escola, que permitisse que eles desenvolvessem esse dever", explica Samantha. Como diz o ditado, «duas cabeças pensam melhor do que uma», e, portanto, Nuno Coleta, também responsável pela Unidade, juntou-se a Samantha nesta viagem de autodescoberta e ambos procuraram proporcionar, a este grupo de alunos, uma experiência diferente.

Tudo começou com uma mesa de cabeceira de cinco euros que, coletivamente, pintaram, lixaram, limparam, estilizaram com papel e mudaram os puxadores. Finalizada esta primeira (re)criação, Samantha e Nuno aperceberam-se de que esta ideia ia muito além do que esperavam, pois, aqueles cinco sorrisos não engavam ninguém. Desde então, tudo mudou, "os alunos começaram a querer realmente vir para a escola". Naquela sala de aula, o céu era o limite e foram dentro dessas quatro paredes que cada um encontrou uma vocação. O Vasco lixava, o Marco arranjava pequenas peças, o José pintava, o Francisco colocava cera e a Sara limpava.

Este gosto não só se espalhou pela escola, como também se espalhou pelos cantos da Murtosa, até começarem a surgir contribuições. "Nós não pedíamos dinheiro, eram contribuições dadas pelas pessoas, um valor justo", esclarece Samantha. Pequenos gestos transformaram-se num abraço caloroso, uma vez que, a partir daí, "começaram a sentir-se úteis e a reparar que, afinal, tinham valor".

Como tudo na vida, uns tinham mais aptidão para uma coisa do que para outra, uns gostavam mais de fazer uma coisa do que outra, mas sob a batuta de ambos os professores, que procuravam trabalhar "o contrariar", os alunos passavam por todo o tipo de tarefas, tirando proveito de cada uma delas. Tentámos falar em desafios e em rejeição, mas a verdade é que essa palavra nunca constou no dicionário deste pequeno grupo. Muito pelo contrário, "eles só queriam trabalhar e estavam sempre superfocados", aliás, "uma das características destes miúdos é a tendência para não se focarem numa atividade quando não é do agrado deles".

Tudo corria às mil maravilhas, mas, entretanto, o mundo havia voltado a estagnar e entrámos num novo confinamento, promovendo um contacto feito exclusivamente à distância. Contudo, nem a pandemia conseguiu desmotivar estes cincos jovens que, mesmo assim, não baixaram os braços. Samantha e Nuno começaram a enviar tarefas para fazerem em casa, com o apoio dos seus pais, mas algo surpreendente aconteceu. "Nós fazíamos pedidos para os quais não eram necessários determinados materiais, mas o que nos espantou foi que os pais compraram, sem nós pedirmos", recorda Samantha. "Depois, para além dos nossos pedidos, que eram coisas pequenas, eles começaram a fazer coisas maiores em casa", acrescenta. Nesta perspetiva, a Banqueta Azul tendeu a ganhar cada vez mais força.

Graças a todo o percurso até então feito, os professores conseguiram juntar dinheiro suficiente para cumprirem um grande objetivo: recompensá-los. Samantha e Nuno ofereceram a cada um dos alunos um tablet de dez polegadas e um kit básico de pintura. Para além disso, proporcionaram-lhes ainda uma ida a um restaurante, bem como uma saída até ao Cais do Bico, junto à ria de Aveiro, que Samantha descreve como tendo sido algo "fantástico, espetacular e enriquecedor, uma experiência única". Aliás, olhar para cada um daqueles rostos era um motivo de orgulho. Naquele momento, "eles sentiram-se especiais, grandes, recompensados e, acima de tudo, valorizados".

O projeto Banqueta Azul chegou ao fim, terminado o ano letivo. Samantha explica que esta decisão foi levada a cabo por motivos de força maior, tendo em conta que "a previsão era a de que eu e o meu colega, que estávamos associados a este projeto, não continuássemos nesta escola". Eis a questão que fica: porquê o nome Banqueta Azul? Samantha explicou ao Gerador que a palavra azul surge por associação ao autismo, enquanto a palavra banqueta trata-se de "um nome fora do vulgar, tal como eles são, mas igualmente importantes e únicos".

Banqueta Azul sob um novo olhar

Meses depois, o que ninguém esperava era que a Banqueta Azul ganhasse uma vida nova, indo além do contexto escolar, sob um novo e diferente olhar. Rosário Lacerda, contabilista de profissão e mãe de Vasco, juntamente com o seu marido, decidiram transformar a Banqueta Azul num ateliê.

Rosário explica que, quando o mundo estagnou com a pandemia, viu-se obrigada a levar o trabalho para casa: "Dei comigo com dois filhos, um deles com aulas à distância e o outro (o Vasco), completamente parado e sem nada para fazer." Não foram precisas muitas horas para o casal decidir comprar uma lixadeira e começar a pôr mãos à obra, visto que estavam a par da paixão nutrida pelo seu filho. "Só que a seguir a lixar, dei comigo a parar o meu trabalho e, entretanto, ia pintar móveis", recorda Rosário. Desta forma, o bichinho pela restauração de móveis foi crescendo até ao ponto de começar a realizar formações online e, até mesmo, a vender móveis juntamente com Vasco. Desde então, o seu dia a dia passou a ser repartido em dois momentos: "Durante o dia, estilizava móveis com o Vasco e, durante a noite, trabalhava nas contabilidades."

Quando o casal se apercebeu de que o projeto escolar não tinha continuidade, e com a chegada do 18.º aniversário de Vasco, decidiram embarcar numa aventura em família e restaurar o futuro do seu filho mais velho.

A Banqueta Azul é, agora, uma empresa privada, mas aberta à comunidade em formato ateliê. Segundo Rosário, é uma empresa privada por "questões profissionais – para o futuro do Vasco", sendo que o objetivo era tornar este espaço no local de trabalho de Vasco após o horário escolar. Por outro lado, é aberta à comunidade, a partir do momento que "recebemos miúdos da escola, com quem assinamos protocolo, para fazerem o PIT" e outras tantas pessoas que queiram fazer parte desta iniciativa. "Entram em contacto connosco para vir até aqui, passam uma tarde, trazem a sua peça, pintam-na e, depois, deixam uma retribuição mínima, porque também temos de ser autossustentáveis. Esta é uma hipótese. Outra hipótese, que também já chegou a acontecer, são adultos – pessoas sem nenhuma característica de necessidade especial – trazerem um móvel e pedirem para os ensinarmos a pintar. Neste caso, é um workshop personalizado. Depois, também já tivemos casos, como um recente, de uma pessoa de idade que veio até aqui pintar um coelhinho, distrair-se, passar aqui uma manhã e foi embora", conta Rosário.

A Banqueta Azul abriu ao público no dia 1 de setembro de 2021 e, até à data, já realizou uma série de atividades, desde workshops a intercâmbios com outras escolas, fora do concelho. Quando falamos em objetivos, a família Lacerda tem-nos muito definidos: dar atividade ao seu filho Vasco e a tantas outras crianças que não se definem pelo seu diagnóstico. Rosário explica que, "a partir dos dezoito anos, eles chegam a um ponto em que vão para casa e não têm nada para fazer" e, portanto, este espaço nasce com o intuito de combater esse estigma. Embora o principal foco sejam pessoas com necessidades especiais, a Banqueta Azul tem as suas portas abertas para toda a gente, para "quem precisa de passar um bocadinho de tempo", fugindo da rotina habitual.

O ateliê pode ser recente, mas os impactos estão bem à vista e não podiam ser mais positivos. "Sinto impacto no sentido em que temos pessoas da terra a fazerem-nos encomendas e outras até nos oferecem móveis e, claro, tudo isso ajuda a sermos autossustentáveis e a sermos conhecidos", partilha Rosário.

Com os olhos postos tanto no presente, como no futuro, um dos principais planos passa por fazer chegar esta ideia lá fora, o que não é muito difícil, uma vez que esta equipa é a única representante da Lignocolor, uma marca de tinta alemã, que é utilizada pela organização na estilização dos móveis. No sentido comunitário, a Banqueta Azul tenciona criar ainda um franchising. "É esse o nosso próximo passo, não sei se o vamos conseguir, mas já houve algum interesse à distância", confessa.

Para algumas pessoas, pode ser apenas um ateliê, mas, para outras, é sinónimo de família, como é o caso de Cláudia Pereira, funcionária da Banqueta Azul. "Isto não é uma loja, é um espaço familiar, pois acabamos por criar uma família – somos todos uma família, portanto acolhemo-nos como tal. Não há aqui discriminação, aliás não pode existir", afirma.

Cláudia é mãe de duas meninas e já frequentava o espaço antes de aceitar a proposta de trabalho – "caiu-me [nos braços] assim de relâmpago", confessa. Cláudia não esconde o carinho que sente por Vasco e, para além disso, tendo estudado Artes, considerou esta proposta como uma oportunidade de fazer algo de que gosta. "É um trabalho de que gosto, aventurei-me e continuo a aventurar-me. Não só estou a aprender, como também faço algo de que gosto", revela Cláudia.

Não podemos falar na Banqueta Azul sem mencionarmos a palavra amor e felicidade. É com muito amor para dar que esta equipa tem os braços abertos para albergar todos aqueles que precisem de aconchego e é desta forma que mostram que são precisos mais espaços como este espalhados pelo país e arredores.

Texto de Ana Margarida Paiva
Fotografias via Unsplash e da cortesia da Banqueta Azul

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