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Entre gotas de chuva e raios de sol, o arco-íris desfilou na Beira Interior

Pela primeira vez uma marcha em defesa dos direitos LGBTQIA+ teve lugar na região. O coletivo “Covilhã a Marchar” convocou ativistas e entidades a trazer as cores para as ruas da 'Cidade Neve', de forma a mostrar que o interior “não está adormecido” e que as reivindicações também se podem descentralizar.

“Oh menina desculpe, mas o que é isto? São os estudantes a pedir propinas de borla não é?”

São estudantes na sua maioria, mas não era propinas gratuitas que eles estavam a pedir. Antes exigiam igualdade, amor livre e o fim da discriminação das pessoas LGBTQIA+.

A primeira marcha do orgulho multicolor invadiu as ruas da Covilhã no passado dia 4 de junho e deu cor às vias pacatas desta cidade do distrito de Castelo Branco. A reunião começou tímida, com a chuva a ameaçar arruinar a manifestação, mas os muitos guarda-chuvas arco-íris depressa mostraram que não seria o mau tempo que os iria desmobilizar.

O encontro fez-se no anfiteatro de rua, junto ao Jardim da Goldra. Ali os manifestantes iam-se juntando nas bancadas para ouvir os discursos das muitas associações e entidades que se aliaram à iniciativa. Houve palmas, gritos de apoio e algumas lágrimas. A assistência compunha-se de estudantes da Universidade da Beira Interior (UBI), alunos de secundário, jovens trabalhadores da região e ativistas de vários pontos do país, além de representantes partidários e de associações. Pelo meio, havia ainda alguns curiosos.

Eulália Almeida foi uma das oradoras neste momento de introdução ao desfile. Conhecida como “mãe Eulália”, esta ativista pelos direitos das pessoas LGBTQIA+ protagonizou um dos momentos mais emotivos, ao exclamar de forma entusiasta a importância de aqui estar presente a “espalhar amor”.

Eulália é natural do Porto. Tem 70 anos e é ativista há seis, altura em que descobriu que o filho é homossexual e que ganhava a vida a fazer filmes pornográficos. A primeira reação que teve não foi pacífica. “[Quando soube] levava o coração cheio de pedras para lhe atirar, mas quando vi que ele tinha uma vida estável pensei “que mãe sou eu, para querer mal ao meu filho?”, diz ao Gerador, ainda a arfar, após largar o microfone.

E prossegue: “No aeroporto disse-lhe: trazia aqui muitas pedras para te atirar, mas ficas a saber que um dia te vais sentir muito orgulhoso porque a mãe a partir de agora vai ser uma militante, uma ativista dos direitos LGBTQIA+”.

E tem cumprido essa promessa. Atualmente faz parte da organização da Marcha do Orgulho LGBTQIA+ do Porto e integra a AMPLOS – Associação de Mães e Pais pela Liberdade de Orientação Sexual e Identidade de Género. Hoje deslocou-se à Covilhã porque, como ativista, “nunca poderia faltar” a esta estreia.

“É muito importante [haver estas iniciativas no interior] porque isto faz abrir mentes e, de certeza absoluta que, quando esta marcha começar, muitas pessoas se vão interrogar: “Tanta gente? Afinal de contas não são assim tão poucos” e provavelmente essas pessoas vão abrir a sua mentalidade. É essa a minha mensagem e que espero que passe”, diz a mãe Eulália, que todos conhecem nestas andanças.

A marcha alinhou-se pouco tempo depois, já com a chuva a dar a benesse aos participantes. De megafones em punho e cartazes ao alto, juntaram-se para rumar ao centro da cidade. Muitos traziam no rosto as cores da bandeira, tintas de glitter ou simples entusiasmo.

“Ainda há muita luta a fazer. Nós ainda sofremos muito preconceito que não é suposto, porque somos todos iguais, temos todos os mesmos direitos”, diz Amália Augusto, estudante de Ciências Farmacêuticas na UBI. A jovem afirma que é importante a realização da marcha na Covilhã, “porque a comunidade LGBT está em todo o lado e é bom as pessoas perceberem que não estão sozinhas”. “Nós somos mais do que as pessoas imaginam”, afirma.

Com o avançar do desfile e seguindo por entre as palavras de ordem, encontramos Luís Pinto, mesmo junto à curva da rotunda. Este jovem gender fluid, natural do Fundão, não esconde o entusiasmo por ver as cores desfilar pela primeira vez na sua região. “Adoro este ambiente! Adoro ver que está tanta gente aqui!”.

Por esta altura já era possível ver que a marcha reunia algumas centenas, estendendo-se por largos metros de estrada, o que até surpreendeu a maioria dos participantes. “Para mim isto é um avanço, honestamente. É um prazer estar a ver tanta gente aqui, a lutar pelo bem comum, por aquilo que nós somos, por ter orgulho naquilo que nós somos e acho que é tipo... excelente, finalmente podermos estar a mostrar isto ao mundo, especialmente aqui no interior”, diz Luís que insiste em sublinhar a falta que sente “destas coisas aqui”.

Quando a iniciativa foi anunciada nas redes sociais, o coletivo “Covilhã a Marchar” – que organizou a manifestação – divulgou um manifesto que foi subscrito por muitas entidades, associações e partidos políticos. O documento defendia que "a luta LGBTQIA+ também é pela Coesão Territorial, porque os direitos têm de ser iguais em todos os locais", e foi assinado pelos partidos Livre, PAN, Volt, Bloco de Esquerda e Juventude Socialista (que estiveram também presentes na marcha), além de muitas organizações feministas, LGBTQIA+, associações juvenis e de desenvolvimento local.

A Coolabora, associação de intervenção social e de defesa dos direitos humanos sediada na Covilhã, foi uma das que esteve presente na marcha. Rosa Carreira, membro da direção, explicou ao GERADOR que a iniciativa “representa também uma manifestação de evolução da mentalidade das pessoas e [um sinal] de que há finalmente conforto para se realizar a marcha”. Isto porque, segundo diz “muitas vezes, a marcha não se realizava porque poderia ser difícil a adesão das pessoas, por se sentirem identificadas e marcadas”.

Rosa é residente “há vários anos” na Covilhã, e reconhece que a pequena dimensão da cidade condiciona a realização de mais manifestações deste tipo. Apesar disso, diz que não recebeu feedback negativo por parte da população local. “Eu vivo numa espécie de bolha, pois trabalho muito e lido muito com pessoas que apoiam este tipo de iniciativas, mas eu diria também que se nota um certo hiato entre as faixas etárias mais jovens, que estão muito abertas e muito receptivas, e as mais velhas onda há muita gente a mostrar-se um bocado retraída em relação a estes eventos”, admite. “De qualquer maneira acho que a evolução está a ser positiva, no sentido de apoiar ou de pelo menos não criticar”, acrescenta a responsável.

A recolha de opiniões alheias à marcha não foi muito frutífera, já que algumas das principais ruas da Covilhã não conheceram neste sábado outras cores que não as do orgulho. As poucas pessoas que observaram a mobilização revelavam desconhecimento, confusão ou indiferença. “Ainda agora estava a dizer à minha filha: agora até já aceitam os casamentos e tudo. Não sei para que é que andam nisto...”, dizia-se por ali.

Mariana Reis, que integra a organização, já antes nos tinha explicado o porquê:

“Nós sentimos que havia uma necessidade muito grande, aqui no interior, de haver a primeira marcha [do orgulho LGBTQIA+]. Por ser só feita agora já indica muita coisa: a falta de representatividade, falta de liberdade de expressão.... é uma cidade ainda muito fechada, que protocola uma liberdade que não existe”.

Mariana estuda na Covilhã há cinco anos. É natural de Santa Maria da Feira e foi um dos rostos principais desta manifestação. Perante a afluência diz que a marcha superou as expetativas. “Estou maravilhada. Para uma primeira vez está a ser algo muito importante. Veio muita gente. Já choveu, já fez sol. Estamos a ter muitas associações que vieram, muita gente que veio de fora, muita gente daqui e acho que está ser um sucesso”, sublinha, antes de voltar a elevar a voz no megafone.

Ao ver o gravador passar por entre o aglomerado, Marlene Noronha lança a pergunta: “Posso dizer uma coisa?”. Claro. Antes de começar explica que é de Castelo de Paiva e que está na Covilhã a estudar psicologia. “Vim aqui porque também apoio a comunidade LGBT. Não quero rótulos, mas a minha irmã é trans e o que eu tenho a dizer é que o mais importante é aceitarmo-nos a nós mesmos, independentemente do que aqueles que estão à nossa volta vão achar, mesmo que seja a nossa família, porque se não nos tivermos a nós mesmos, não teremos ninguém”.

Tal como Marlene, Ana Catarina Ribeiro também estuda aqui, apesar de ter nascido em Vila Real. Veio manifestar-se por achar que a marcha “é um marco simbólico” na cidade e região. “É dizer que o interior não está adormecido relativamente a esta assunto e ver estas pessoas todas, nesta cidade que supostamente não teria tanta gente disposta a mostrar-se, é incrível”, sublinha.

Além da organização da manifestação, o coletivo “Covilhã a Marchar” reuniu previamente com o executivo camarário, com o objetivo de “encontrar soluções conjuntas para a comunidade LGBTQIA+ da região”. Na sessão, tinha sido proposto que a bandeira de riscas coloridas fosse hasteada nos paços do concelho e que o edifício da Câmara Municipal fosse iluminado com as cores da mesma, no dia 17 de maio, Dia Internacional Contra a Homofobia, Transfobia e Bifobia. As propostas não foram acolhidas exatamente nos moldes pretendidos, porém a bandeira foi pendurada numa varanda do edifício. “Do nosso ponto de vista é um passo para que, no próximo ano, já estejam mais conscientes e abertos para a pendurarem mesmo no mastro”, referiu Marta Almeida ao Gerador, numa entrevista prévia à realização da marcha.

Contrariamente às expetativas, nenhum representante da autarquia esteve presente, o que não deixou de ser notado pelos manifestantes.

Importa referir que esta marcha beirã inaugurou o mês do orgulho, e deu o pontapé de saída para as muitas outras que têm lugar pelo país. 10 de junho em Sintra, dia seguinte em Aveiro, 18 de junho em Lisboa, 19 em Bragança, 25 no Porto e em Faro. Dia 26 a marcha estreia-se nas Caldas da Rainha. Além destas, outras manifestações estão agendadas, numa lista que se prolonga até outubro. Este ano há, também, mais cidades a aderir à iniciativa pela primeira vez, como é o caso de Famalicão (10 de setembro), Esposende (17 de setembro) ou Vizela (1 de outubro).

“Vamos ocupar a praça”, ouvia-se pelos megafones que orientavam o percurso. Já a meio da tarde, o grupo assentou arraiais na Praça do Município, onde foi lido o manifesto e feitos apelos inflamados de continuidade. A gigantesca bandeira do orgulho LGBTQIA+ ondulou em frente ao edifício da Câmara Municipal, onde acabou por servir de tapete à assistência da performance teatral, levada a cabo pelo Laboratório de Teatro e Política. Os cartazes e bandeiras repoisam agora, multiplicando-se pelo chão e encostando-se aos pilares do edifício. As faces coradas fazem silêncio para ouvir o espetáculo. A marcha está a a chegar ao fim, mas as cores não desaparecem, espalhando-se pelas ruas da cidade.

Antes ainda da marcha ter partido, Alexa Santos, membro da direção da associação pelos direitos das lésbicas Clube Safo, explicava o motivo pelo qual todos se deslocaram aqui: “As marchas têm todas uma importância específica que é visibilizar estes corpos e estas pessoas que são LGBT”.  

“O facto de saírem à rua mostra que, neste lugar, neste território específico, existem estas pessoas e que é inegável. Já não se pode dizer que na Covilhã isso não existe”, rematou a ativista.


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