Março 2020. Em apenas uma semana, o espaçoso estúdio de ensaio foi substituído pelo meu pequeno quarto. A nova rotina passou a ser cumprida meticulosamente: arrastar mobília, estender o tapete de yoga, conectar-me à videochamada e pensar em mais uma forma de encontrar inspiração naqueles 10m2. Ao longo de doze semanas, trabalhei virtualmente com um grupo de bailarinos internacionais para uma performance online inspirada na questão: como nos podemos conectar através de um ecrã que nos separa? Se o tempo e o espaço são fundamentais na criação coreográfica, então a nossa criatividade foi desafiada a transcrever a realidade de uma outra forma. O corpo, limitado apenas ao que o rodeava, encontrou no espaço digital um outro canal para criar e experienciar movimento. Durante essas doze semanas, entre ensaios individuais e em grupo, percebi que o que nos movia para criar coreografia já não era o som, o toque ou os exercícios de improvisação, mas sim a experiência comum que partilhávamos: o impedimento de estar em estúdio e a necessidade de nos adaptarmos a este novo tempo e espaço.
A forma como o nosso corpo “dançou” esta pandemia está fortemente ligada à forma como nele foram impostos novos limites, mas também novas oportunidades. No artigo do The New York Times, “How We Use Our Bodies to Navigate a Pandemic”, a crítica de dança Gia Kourlas deixa-nos um forte apelo: precisamos de voltar aos nossos corpos — quer dancemos, quer não. A intensidade das nossas rotinas desconectou-nos, talvez demasiadas vezes, da nossa própria mobilidade e fez-nos esquecer de viver a realidade a partir do nosso corpo. No período pandémico, foi precisamente o nosso corpo que nos restou. O movimento do exterior cessou, mas não o nosso. A velocidade do quotidiano abrandou, mas não o nosso batimento cardíaco. Houve tempo para voltar ao corpo. Houve um outro espaço para o partilhar com os outros — pelo mundo digital.
Se o ato de coreografar tem em si adjacente a necessidade de proximidade, as plataformas digitais vieram precisamente manter este princípio, mesmo que redimensionado. A criação coreográfica no ambiente digital trouxe a inquietação necessária para inspirar movimento. Foram muitos os coreógrafos que questionaram a forma como o corpo se expressa em diferentes plataformas digitais. Foram muitos os performers que sentiram a necessidade visceral de reagir com maior criatividade às limitações impostas. O processo de criação passou, assim, a ser a preocupação principal, já que traduziu as múltiplas soluções que o corpo encontrou para captar (e dançar sobre) esta nova realidade. Se já nos tínhamos acostumado, como espectadores, a performances em vídeo, nunca, como artistas, nos tínhamos acostumado a chegar a esse resultado da forma como temos chegado ao longo deste ano. Fazer parte de uma criação completamente restrita ao universo online fez com que o processo fosse a fonte de toda a criação.
Conscientes também dos fatores negativos que a tecnologia traz à nossa sociedade, sobretudo na sua capacidade de nos absorver num constante fluxo de informações e tumultuosas ondas de estímulos, a comunidade da dança soube mergulhar de cabeça e nadar através da turbulência para encontrar uma nova costa. Se o digital trouxe novos espaços de ensaio e novos palcos, trouxe também o que por vezes faltava anteriormente: o espaço para a conversação. Se o meu quarto foi o meu estúdio e palco durante os últimos meses, foi também uma sala de aula e de debate – a resposta à crise pandémica fez-se também através da partilha e do diálogo entre uma comunidade da dança que, provavelmente, nunca se sentiu tão unida. Falou-se, sobretudo, sobre acessibilidade e como a tecnologia permite que mais pessoas experienciem dança de variadas formas, sem necessitarem de se deslocarem aos teatros. Mas onde fica o nosso corpo numa atividade artística puramente digital?
Doze semanas depois, chegou a tão ansiada estreia – como será dançar em livestreaming através do YouTube, sem sentir o calor de uma plateia? Do outro lado, dezenas de espectadores juntavam-se, oriundos de vários países do mundo. Os corpos que iam ver naquela noite aconteciam no digital, foram somente corpos digitais. Sem a textura dos músculos, sem as camadas de ossos e pele. Sem suor. Mas o que restou afinal desses corpos digitais? O que resta sempre e faz a dança existir – a essência do movimento e a vontade incessante de entender a realidade. Não há nada que substitua a dança ao vivo. Mas não há nada que igualmente substitua o alcance da dança no digital. Neste limbo entre os dois mundos, chego ao final do ano com um corpo mais indeciso acerca do seu lugar no mundo, mas com um corpo que olha para o digital não como um espelho, mas sim como um vidro de onde pode olhar para uma comunidade mais global que lhe permite sentir, observar, criar e entender melhor o seu corpo e todos os outros que o irão voltar a rodear.
-Sobre Inês Carvalho-
Inês é bailarina e professora, gestora de comunicação cultural e escreve regularmente sobre o que mais gosta: dança. A mente inquieta levou-a a criar a agência de comunicação Diagonal Dance. O corpo inquieto levou-a a dividir o seu tempo entre Portugal e o Reino Unido.