A serra da Estrela é rica em estímulos sonoros, desde pássaros a cantar, pequenos cursos de água a correr, folhas das árvores ou até o eco da nossa própria voz (se a projetarmos por seus vales adentro).
Deambular pelos recantos da montanha é conhecer novas atmosferas, tão diferentes quanto as rugas gravadas em cada rocha saliente. Há novos cenários para descobrir e pessoas para conhecer, cada uma com histórias próprias e conhecimentos singulares dos terrenos acidentados.
E se alguém pudesse captar todos estes sons e guardá-los para sempre?
Xoel propôs-se a essa missão. O jovem cartógrafo sonoro deslocou-se à montanha para a conhecer no seu estado mais puro, numa tarefa que se tornaria numa inédita jornada de descoberta. Após aceitar trabalho na reconstrução de umas das antigas rotas de transumância, Xoel conheceu Zé Maria um fervoroso ativista ambiental da região, que passou a acompanhá-lo serra fora. Juntos, partilharam vivências e conversas pelo meio de trilhos e vales rochosos. A sua aventura ficou registada e será contada... numa tela de cinema, num futuro próximo.
Confuso? Talvez seja um pouco. É que tal como esta história, também o filme À Procura da Estrela pisa a fronteira entre realidade e ficção.
Esta que é a primeira longa-metragem do realizador galego Carlos Martínez-Peñalver, baseia-se na própria realidade da serra da Estrela para contar uma história ficcional. O filme À Procura da Estrela, que deverá estrear na próxima primavera, bebe das vivências das gentes locais para contar a jornada de Xoel pela serra mais alta de Portugal.


A ideia surgiu após uma estadia na região da Beira Interior, que, por volta de 2018, serviu de cenário a uma curta-metragem de Carlos Martínez-Peñalver. O tempo foi curto para tamanha hospitalidade, o que deixou o realizador galego com vontade de regressar. Queria fazer um trabalho que fosse “mais generoso” com o local que acabava de conhecer, e que exprimisse a vontade que tinha de valorizar o território e as pessoas das aldeias. “Tens de ser consequente com quem te ajuda”, explica.
Entre regressos e ausências, conseguiu financiamento para realizar a sua ideia, voltando aos montes de câmaras em riste. “Comecei a construir um guião a partir da gente que conheci lá, a partir do que me contavam, a partir da própria experiência”, diz o realizador galego que já trabalhou com o premiado cineasta Oliver Laxe.
Os habitantes foram, assim, o princípio e o fim desta jornada cinéfila, que passou pelos concelhos da Covilhã, Gouveia e Seia. Talvez o exemplo mais paradigmático seja José Maria Saraiva, personagem secundária do filme que passou de guia a ator sem que nada o fizesse prever. “Acho que não traziam ideias nenhumas na cabeça [inicialmente], apenas vinham conhecer e devem ter gostado. Devo-lhes ter causado boa impressão”, diz ao Gerador.


José Maria é proprietário do Parque de Campismo Rural Vale do Beijames, perto de Manteigas, onde Carlos Martínez-Peñalver e o seu clã ficaram alojados, quando ainda só imaginavam esta longa-metragem. Por ter sido vigilante da natureza e técnico do Parque Natural, José Maria detém grande conhecimento sobre a serra onde sempre viveu, pretexto que se revelou fantástico para o incluir nesta história.
“Eu, na altura, não liguei muito a isso. Pediram-me se eu os podia ajudar e tal... mas eu estava a milhas. Não sabia sequer que iriam fazer uma longa-metragem. Pensei que era uma coisa qualquer de estudantes. Passado algum tempo, a coisa já veio assim mais concretizável. Eles estavam sempre a perguntar se eu os ajudava, se os apoiava. Sempre disse que sim, longe de imaginar que vinha a ser ator”, relata, entre tímidas risadas.
“Escusado será dizer que, quando ele [Carlos Martínez-Peñalver] me aparece com um guião com doze páginas para ler eu lhes disse taxativamente que não ia decorar aquilo. Nem o li [todo] sequer”, relata o antigo vigilante, que se representa a si próprio na trama. “Não decorei guião nenhum. À medida que depois ia acontecendo aquilo, eu ia vendo e só precisava das deixas. Tudo o resto foi inventado [risos]”, diz ao Gerador.
De facto, tal como José Maria Saraiva, todas as personagens do filme À Procura da Estrela são representadas pelas próprias pessoas que retratam. Não há atores profissionais, apenas pessoas reais, que se representam a si próprias num enredo que bebe das suas próprias vidas.


Trabalhar desta forma, com atores “amadores” é, para Carlos Martínez-Peñalver, “muy lindo” e recompensador. “A principal diferença é que tens de passar muito tempo e também estar aberto a descobrir como [as pessoas] se sentem cómodas, já que não têm uma experiência prévia”, explica.
Joel Fontán – AKA Xoel, personagem principal do filme – descreve a experiência como “única e muito enriquecedora”, no plano pessoal e coletivo. “Foi uma alegria trabalhar assim sempre, [de forma] mais humana e vulnerável, pois eu tinha muito receio da minha capacidade como ator principal, e senti por parte de toda a equipa de atores muito calor, respeito e harmonia no que estávamos a fazer”, diz ao Gerador o filólogo galego que é, tal como a sua personagem, um aficionado da cartografia sonora.
Joel explica que a jornada de trabalho foi por vezes dura, já que as filmagens decorreram frequentemente em lugares bastante inóspitos, que obrigavam a longas caminhadas em percursos íngremes. “Como ator, a experiência foi tão específica e intensa que a lembro como se fosse um sonho, ou como um shot de bagaço no clímax da noitada”, afirma.
“As jornadas de trabalho eram muito longas e duras, em localizações agrestes e muito afastadas umas das outras. Muitas horas e muita caminhada sob o sol, a chuva e a névoa”, acrescenta.


A cultura como alavanca para a economia local
Por ser rodado em locais bastante recônditos, o filme À Procura da Estrela – cujo título é, ainda, provisório – teve o apoio das juntas de freguesia e a produção local da Maria Zimbro.
A produtora Elisa Bogalheiro explica ao Gerador que uma das maiores dificuldades durante a rodagem foi a instabilidade climática, que muitas vezes impossibilitava as filmagens. “Este filme foi 95 % filmado no exterior, e isso significa que nós apanhámos tudo, desde sol, a granizo, neve”, refere.


Além disso, diz que esta é uma região “que ainda não está tão habituada à produção cinematográfica como deveria estar”, pois, apesar de possuir uma grande riqueza paisagística há ainda alguma falta de meios e apoio.
Durante uma visita à vila de Verdelhos, um dos locais de filmagem desta película, o Gerador contactou não apenas com elementos da produção local como da população, que valoriza a escolha da localidade para as filmagens. Daniela Correia, presidente da Junta de Freguesia desta aldeia no concelho da Covilhã, conta que inicialmente a população ficou um pouco surpresa pela presença dos forasteiros, mas que depois o processo “correu bem”. “Ficámos bastante felizes pelo facto de Verdelhos ser um dos palcos das gravações deste filme. Foi muito bem visto pela população. Acho que a equipa que esteve cá foi muito bem acolhida e nós, Junta de Freguesia, também tentamos apoiá-los ao máximo”, diz a jovem.
Este apoio traduziu-se em ajudas de transporte, esclarecimentos e indicações úteis que possibilitaram as filmagens, mesmo quando o tempo não prometia ajudas.


O ponto mais positivo deste tipo de projetos é, segundo a responsável, a valorização turística da aldeia, além do importante contributo que é deixado na economia local.
A realização do filme teve, por isso, impacto positivo, pois “durante uma semana, ou dez dias – fora os dias que vieram cá antes – alugaram casas, tiveram ali material, carros para um lado e para o outro, movimento, apoio da junta... de certeza que toda a gente se deve ter apercebido do movimento e apercebeu-se que havia por aí filmagens. Tudo isto mexe”, diz José Maria.
“Tudo o que seja arte é sempre fundamental para despertar consciências, para promover a região, ainda mais quando são projetos destes, em que não há qualquer tipo de poluição”, acrescenta ainda o guia que se tornou ator durante uma semana.
Por agora, gere-se a curiosidade para ver o resultado final, que deverá ver a luz do dia a meio do próximo ano, possivelmente no âmbito de um festival de cinema. Até lá, José Maria vai vivendo a serra da Estrela, enquanto espera. “Aquilo que irá sair... eu não faço a menor ideia. Eu, para já, nem gosto de me ouvir, nem gosto de me ver. Portanto, o que sair deve sair bem”, diz entre gargalhadas.

