Uma das realidades visíveis que sai reforçada ao cabo destes longos meses de pandemia é a oposição quase dicotómica entre centro e periferia. Sendo certo que na dimensão sócioeconómica – aquela sobre a qual me interessa discorrer neste momento – tal oposição ultrapassa em muito a dimensão geográfica oferecendo uma leitura bem mais complexa; assim manchas periféricas podem coexistir nos próprios centros, desenhando realidades descontínuas.
Esta oposição tem um impacto reforçado no setor cultural em Portugal, expondo a sua incipiência e a sua anemia quando cruzamos oferta e território.
A profunda crise que tem assolado o setor cultural nos últimos meses e aprofundando a precariedade dos agentes culturais, não é apenas a de um setor que de um momento para o outro teve de fechar portas e seguidamente reduzir lotações ou fluxos de público, é também, e mais profundamente, a de um sistema que em várias décadas de regime democrático não entendeu que, políticas culturais não são somente aquelas que permitem a sobrevivência dos agentes e das instituições culturais de forma abstrata, numa relação unilateral desencadeada pelos sucessivos quadros de apoio à atividade artística.
Neste sentido, as políticas culturais são hoje preferencialmente políticas de território, diretamente propulsoras do seu crescimento, estabelecendo com outras como a mobilidade, educação, o urbanismo, o investimento, e de forma integrada, metas e resultados de coesão.
Estamos, portanto, muito longe da premissa Malrausiana de que ao Ministério da Cultura, bastaria apenas, como programa e linha de ação, colocar os cidadãos perante as grandes obras primas concebidas, ao longo da História, pelo génio humano.
Neste sentido, políticas culturais de território deverão emanar necessariamente de uma visão objetiva e concreta ancorada na realidade singular desses territórios. É forçoso, no caso português, que este esforço estratégico se liberte de atavismos administrativos e localistas, projetando uma realidade nova, que traduza o que são hoje as necessidades, aspirações desde a dimensão social até à dimensão económica passando por áreas tão dispares como o ambiental, o antropológico e o simbólico, emanando desses mesmos territórios.
Assim sendo, a dimensão municipalista que em alguns casos remonta à fundação do país, não é a mais adequada a um território cuja transformação se operou de forma bem mais profunda nos últimos 50 anos do que nos 100 anos precedentes.
Seguindo esta lógica, é fundamental a afirmação de que a crise do setor cultural em Portugal, exacerbada pelo fenómeno pandémico, é naturalmente também aquela que radica no profundo desequilíbrio do seu território. É este reequilíbrio, creio, que nos deverá ocupar prioritariamente nas próximas décadas, processo no qual é forçoso que as políticas culturais detenham uma participação ativa, coerente, estratégica e sobretudo no mesmo plano que as demais políticas de desenvolvimento.
A enorme premência que se abateu sobre o sistema cultural em Portugal tem subjacente uma realidade desgastada em que os agentes culturais, acantonados, na sua maioria nas duas maiores cidades do país, disputam um parco financiamento, revelando-se sempre insuficiente pela inexistência de um sistema que opere a sua otimização, não apenas em termos de investimento, mas sobretudo na possibilidade de aprofundamento, alargamento e enraizamento da cultura como sedimento de uma sociedade que deve encarar a democracia não como um facto consumado, mas como um processo em permanente construção.
-Sobre Miguel Honrado-
Licenciado em História pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e pós-graduado em Curadoria e Organização de Exposições pela Escola Superior de Belas Artes de Lisboa/ Fundação Calouste Gulbenkian, exerce, desde 1989, a sua atividade nos domínios da produção e gestão cultural. O seu percurso profissional passou, nomeadamente, pela direção artística do Teatro Viriato (2003-2006), por ser membro do Conselho Consultivo do Programa Gulbenkian Educação para a Cultura e Ciência – Descobrir (2012), pela presidência do Conselho de Administração da EGEAC (2007-2014), ou a presidência do Conselho de Administração do Teatro Nacional D. Maria II (2014-2016). De 2016 a 2018 foi Secretário de Estado da Cultura. Posteriormente, foi nomeado vogal do Conselho de Administração do Centro Cultural de Belém. Hoje, é o diretor executivo da Associação Música, Educação e Cultura (AMEC), que tutela a Orquestra Metropolitana de Lisboa e três escolas de música.