Não foi sem dificuldades que viveu as últimas duas décadas – as primeiras da sua história –, mas a Companhia João Garcia Miguel, que se dedica às artes performativas exploradas no teatro, promete continuar a produzir e, diz o fundador, está mesmo a viver um segundo nascimento. Depois dos anos em Lisboa, está agora de regresso a Torres Vedras e a abraçar o seu projeto “mais ambicioso”, que se debruça sobre a “geografia emocional” de Portugal. Apocalipse 2020, que estreia esta semana no Cineteatro Municipal de Serpa, é um dos primeiros reflexos desse projeto.
Corria o ano de 2002 quando João Garcia Miguel decidiu fundar a companhia, a que daria o seu nome e que foi, “de certa forma, a continuidade do percurso” que traçara com o OLHO, grupo de teatro que tivera sido muito ativo, sobretudo, nos anos 90.
Nascido em Almada – “concelho muito instigador daquilo que era o teatro e as artes performativas”, nas palavras do referido artista –, o OLHO marcara, de certa maneira, aquilo que foi “o percurso das artes performativas” em Portugal nessa última década do anterior milénio. Mas o seu crescimento acabou por tornar o projeto “utópico e impossível”, frisa João Garcia Miguel.
Embora o artista considere que houve continuidades entre esse grupo e a companhia, enquanto o OLHO se centrara mais na relação com o espaço, a nova companhia veio debruçar-se mais sobre “o texto, a palavra escrita e o corpo do ator”, conta o fundador. “A companhia acaba por se tornar mais radical utilizando materiais conservadores como o texto, as narrativas, a ligação ao corpo e à voz na formação do ator, com raízes que vai buscar ao teatro europeu, de leste, também ao teatro francês e inglês, do qual somos todos herdeiros”, explica.
A primeira criação da nova companhia viria a estrear em setembro de 2003. Com o título Especial Nada, tratou-se de um espetáculo escrito a partir dos diários de Andy Warhol. “Era uma espécie de biografia fantasiada e inventada de Andy Warhol”, lembra fonte oficial da companhia.
Seguiram-se duas décadas para a Companhia João Garcia Miguel, com dezenas de criações e “muita variabilidade” quanto aos espaços que ocupou. Viveu uma espécie de nomadismo, que, de acordo com declarações oficiais da companhia, até acabou por condicionar de forma importante o trabalho. “A companhia não teve ainda um espaço de residência próprio”, nota fonte oficial, explicando que os primeiros tempos foram passados em Lisboa, no Espaço do Urso.
Seguiu-se uma temporada no Espaço Coisa, em Torres Vedras. Esses anos foram “muito felizes”, recorda o fundador. Segundo ele, a companhia “andava, porém, sempre a flutuar em função dos apoios, o que condicionava o trabalho”. Por isso, em 2015, decidiu voltar a Lisboa, onde esteve, primeiro, no espaço RE.AL, e, depois, no Teatro Ibérico, entre 2016 e 2022. “Foi importante para nós. Podemos trabalhar com a comunidade local, com a junta de freguesia. Mas os acessos, em termos de transportes, eram difíceis”, salienta João Garcia Miguel.
Além disso, o fundador crítica o processo de atribuição de apoios, já que era preciso financiamento para a companhia, que tem despesas próprias de criação, mas também para o Teatro Ibérico, que tem despesas de estrutura. “Não se conseguiu fazer perceber que estas duas despesas têm de ser conjugadas ou separadas de alguma forma. Isso acabou por ser penoso, tanto para o Teatro Ibérico como para a companhia e tivemos de seguir o nosso caminho”, segundo declarações da companhia ao Gerador.
Assim, a Companhia João Garcia Miguel decidiu voltar a Torres Vedras, ao Espaço Arenes, onde agora vive “um segundo nascimento”. “É preciso reinventar-nos”, defende o fundador, que sinaliza que está em curso, neste momento, o projeto mais ambicioso da companhia, que se chama A arte de ser português. O projeto parte do título de um poema de Teixeira de Pascoais para refletir, anuncia a companhia, sobre um “conjunto de figuras maiores das nossas artes, letras e sociedade civil procurando, através das artes, encontrar novas formas de diálogo com o passado”.
Para João Garcia Miguel, este projeto dedica-se “com alguma pertinência ao sentir português”, à “geografia emocional” do povo luso. “Neste âmbito, estamos a levantar documentação, assuntos, textos e biografias. É uma maneira de irmos contribuindo para o conhecimento do que se esconde por detrás das muralhas, das nuvens, das pedras, das viagens.”
No âmbito deste projeto, estão pensadas as seguintes criações teatrais para 2023: “O Meu Nariz é Árabe” (que já estreou), Apocalipse 2020 (que estreia este mês), A Ruiva, e Maria Coroada (que chegarão aos palcos no segundo semestre).


No caso d’O Meu Nariz é Árabe, que já está em circulação, o intuito foi refletir sobre o pensar do poeta Al Mutamid, da cultura árabe e da relação entre tudo isso e o “mundo português”. “É uma celebração das nossas raízes árabes”, anuncia a companhia. O espetáculo foi cocriado com a associação cultural D’Orfeu AC.
Já Apocalipse 2020, que estreia esta sexta-feira, dia 26 de maio, inspira-se naquele que foi o “ano que nunca mais acaba”, assim define com humor João Garcia Miguel. Criada com a associação Baal17, esta peça “remete para a leitura de textos apocalípticos que falam dessa ideia de fim do mundo, do nascimento de outro, da mudança de uma época, da mudança de atitudes”.
De resto, tal como estes dois espetáculos, muitas produções destes 20 anos da companhia foram criadas em parcerias, já que o trabalho do teatro é “coletivo, de pesquisa, de constante procura de outros, de outras biografias, de outras vidas de outros laços que nos unam através do trabalho artístico”, salienta fonte oficial da companhia. “Nesse sentido, de cada vez que nos relacionamos com o parceiro artista com quem trabalhamos, vivemos uma vida nova. E isso é muito importante e de alguma forma multiplica as nossas vidas”, entende o fundador. João Garcia Miguel revela que, nesses diálogos, acabou mesmo por se tornar mais flexível, tolerante e aberto à diferença.
Para 2024, estão a ser preparadas mais produções no âmbito do projeto A arte de ser português, que servirá como um guarda-chuva para as várias criações dos próximos anos, observa João Garcia Miguel.
Em paralelo, a companhia está também a desenvolver um projeto de formação em teatro em Torres Vedras, uma escola , revela o fundador ao Gerador. “É uma aventura para nós. Abre 2023, em outubro, se tudo correr bem e houver alunos para tal”, indica. E detalha que está a ser pensado um curso de dois anos, estando a ser avaliada a possibilidade de a companhia se ligar a alguma universidade, neste âmbito.
Duas décadas depois, a Companhia João Garcia Miguel garante, assim, manter-se cheia de vitalidade. “Somos tidos como uma companhia que correu riscos, ainda corre, que faz espetáculos um pouco fora da caixa e às vezes falhados e, se calhar são esses, os falhados, os mais interessantes”, observa o fundador.
Isto num momento, reconhece, em que o teatro vive uma “grande crise”, uma vez que cada vez há menos público e há uma “política do gosto em que os programadores fazem a relação daquilo que os públicos devem ver”. “Há que procurar formatos de ativismo e de relação com aquilo que é o sonho dos artistas, das artes, o sonho de transformação do mundo de muitas e diversas maneiras”, apela. “A companhia está muito atenta e muito sensível a isso e tem procurado, com as suas limitações e capacidades, recuperar esse entusiasmo que as artes já tiveram e que parecem, agora, imbuídas numa certa desilusão, falência e inoperância”, remata o fundador.