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Esta crónica não é sobre pokémons

Nas Gargantas Soltas de hoje, André Tecedeiro fala sobre a dificuldade de apanhar pokémons em Bissau.

Há alguns anos, diante do Estabelecimento Prisional de Lisboa, escrevi um poema em que falo em pokémons. Eu andava por ali a rodar pokéstops quando comecei a ver jornalistas por todo o lado. Tinha havido um motim na prisão. 

Esta crónica, como esse poema, fala em pokémons para falar de outras coisas. 

Passei 11 dias na Guiné Bissau, a convite do Centro Cultural Português e da Cooperação Portuguesa/Instituto Camões. Tinha na agenda um djumbai com artistas plásticos e outro com escritores guineenses; dois workshops de escrita criativa na Tchico Té, uma oficina de teatro e uma conversa sobre direitos humanos, organizada pela ONU. 

Logo no primeiro dia, percebi que haveria um antes e um depois daquela viagem. Percebi também que não poderia escrever sobre a Guiné Bissau: o meu olhar de europeu branco não seria nem justo, nem necessário. 

Eu tive acesso a relatos, notícias, filmes. Se nada disso me preparou para o choque cultural, de que forma as minhas palavras poderiam preencher este fosso? E quem as iria ler? Com que intenção? 

É fácil lidar com qualquer realidade quando estamos sentados no nosso sofá. À distância, é como se tudo se resumisse a números. Mas a percepção é outra quando nos tornamos uma ilha de privilégio rodeada de realidade por todos os lados. 

E apesar de estar ali, de sentir o calor, de ter aquela terra vermelha a invadir-me os pulmões, eu soube que continuava distante porque, ao contrário de muitos guineenses com quem me cruzei, eu podia não estar ali. Eu tinha um passaporte europeu, um bilhete de avião já comprado, data de regresso a casa. Eu tinha escolha. 

Em Lisboa adormeço cedo, em Bissau adormeci sempre tarde. Às três ou quatro da manhã continuava às voltas na cama. Por causa do calor, da sede, dos mosquitos,

de uma música que nunca percebi de onde vinha. Mas principalmente por causa dos reajustes do meu cérebro, que tentava encaixar todos os estímulos. 

Os ramos de galinhas vivas nas mãos dos vendedores. A escassez de quase tudo. As cores. Os plásticos sujos. Os portugueses. Os abutres. A competição entre ONG. Os relatos alarmantes dos enfermeiros e médicos em missões humanitárias. O trânsito parado. Os toca-toca. Crianças carregando o seu peso em água. O barbeiro a trabalhar à sombra da mangueira. As fogueiras de lixo iluminando a noite. Os espiões. As ostras deliciosas. A mancarra. As papaias em água com lixívia. As mãos de um velho rastejando no pó e avançando, apesar das pernas paralisadas. 

Não confundam nada disto com a Guiné Bissau. Estas são apenas coisas que me ficaram na cabeça, o mosaico podia ser outro e cada pessoa faria o seu. 

Quem quiser perceber como é a Guiné Bissau do séc XXI, deve visitá-la. E se tiver o cuidado de não se deixar toldar por fascínios e exotismos, compreenderá porque não a podemos compreender. 

Numa noite de insónias, fiz o que sempre faço quando não consigo dormir: peguei no telemóvel para jogar Pokémon. Tinha comprado um cartão de internet a um rapaz que tinha uma tábua como mesa de trabalho. Ter internet deu-me segurança. 

Encontrei somente um pokémon, e não havia pokéstops por perto. Por mais que rodasse e ampliasse o mapa, nada. Mais tarde percebi que, em toda a cidade, havia apenas cinco ou seis pokestops. Os pokémons eram ali tão escassos como os cuidados de saúde. 

Tentei então fazer batalhas com jogadores aleatórios, de outras partes do globo, mas tive de desistir porque a minha internet intermitente me colocava em grande desvantagem. Era demasiado frustrante. 

Mas que falta fazem os pokémons num país sem saneamento básico? Num país onde a água potável se compra na rua em saquinhos de plástico? Onde é preciso acautelar o tempo de uma reunião porque não podemos manter as pessoas muito tempo numa sala quente sem água? 

Falo-vos do Pokémon porque nessa noite pensei “se eu vivesse aqui, nunca teria chegado ao nível 43”. E senti-me triste porque percebi logo que este não era um pensamento sobre o jogo. Era um pensamento sobre vida e oportunidades. 

-Sobre a André Tecedeiro-

André Tecedeiro é um escritor português nascido em 1979. Tem licenciatura e mestrado tanto em arte como em psicologia. Publicou sete livros de poesia, sendo o mais conhecido “A Axila de Egon Schiele” (Porto Editora, 2020).

Texto de André Tecedeiro
As posições expressas pelas pessoas que escrevem as colunas de opinião são apenas da sua própria responsabilidade.

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