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Esta manhã acordei

Quando acordo nem reparo que acordo. Acordar é só um passo antes do dia. Não…

Texto de Redação

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Quando acordo nem reparo que acordo. Acordar é só um passo antes do dia.

Não guardo da noite os sonhos num torpor quase uterino, entre lençóis quentes e o silêncio lá fora. Não prolongo o sono com a preguiça boa do não fazer nada, atestando que depois de dormir e antes do dia há um lugar horizontal de gestos e quietude.

Gostaria, claro, de perceber, de encontrar, o momento exato em que deixo o abandono do corpo e do espírito à confiança na escuridão e entro na vigília laboriosa das tarefas.

Essa fronteira que limita o extraordinário mundo da noite e ativa o ordinário universo do dia.

Acordar é um ato do qual só me lembro quando estou acordado, quero dizer, não sei definir o processo, não tenho vislumbre evidente sobre o torpor, estar a meio caminho entre a mundividência lúcida e aquela que tudo pode. A lucidez, tem a mesma raiz da palavra luz. Mas duvido que a luz esteja acantonada, em exclusivo, do lado solarengo das horas. A cobertura horizontal da noite oferece uma alternativa ao homo erectus do dia. Ou melhor, uma completude. Erguer o corpo e o espírito para a manhã não é, necessariamente, um rutura, um antagonismo com o leito vazio.

Acordar, na confiança dos dias, reparar nos pequenos interstícios das janelas, cobertos de luz. E sair do casulo, para a prática das rotinas. Como se a vida fosse um eterno retorno entre o momento do repouso (também ignoro o exato momento do adormecer!) e aquele em que os olhos se abrem.

Abrir os olhos e receber a luz não é um par. Como dois sapatos ou duas peúgas. Há momentos até em que reparo na singular abertura de um sonho entrando pela madrugada. A manhã dá-me de volta a invenção da verdade, colocar a inverosimilhança  como parte do real. Realmente andei de patins sobre o gelo que se acumulou na parede vertical do meu prédio, comi três sapos vermelhos em Beirute, voei sobre as prisões da Crimeia e qual super-homem, com o simples poder dos músculos, libertei todos os oprimidos do mundo. Tornei-me jovem mantendo a sagacidade e ágil que nem um pêro sem largar uma elegância supostamente britânica. Também sou eu, conforme as horas avançam, à hora do almoço (apesar da camisa posta não o mostrar).

Já perdi ilusões sobre a realidade. Quer dizer, a segurança no exercício que faço ao afastar os cobertores e colocar os pés no chão.
Os pés bem assentes no chão.
Que parvoíce.
Não bastasse a ciência da gravidade que tudo puxa para baixo, ainda a ideia de assentamento. Uma tautologia desnecessária. Felizmente que a cabeça está no cimo do pescoço e não na ponta de baixo das pernas.
A cabeça bem assente no chão.
É isso que acontece a maior parte das vezes.
Acordar e assentar a cabeça no chão, cheirando o pó, ouvindo as formigas e vendo os rodapés.
Um farol invertido, iluminando a parte fútil do horizonte.
Abrir os olhos e ver o banal curso das pessoas e das coisas, num tédio que se vive mas não se percebe.
A gravata amarrada às calças segura bem o pescoço e a saia com ligas as ancas. Cintos de segurança contra o choque da realidade.
Esta manhã acordei.
Acordei?

Há corpos mortos que se acumulam nas morgues e nas arcas frigoríficas.
Centenas de pessoas com os pulmões entubados.
Médicos e enfermeiros a correr numa roda viva, numa roda semi-viva, numa roda mortal.
Os jornais de todo o mundo dizem que somos o pior país do mundo.
Acho que a culpa é de um vírus inglês e dos portugueses em geral, que são irresponsáveis e infantis. Pelo menos é o que depreende do que diz o governo. O governo é cool (como as arcas frigoríficas) porque é de Esquerda, e portanto, é cá dos nossos.
Acordei?

Esta manhã, centenas de decisores públicos acordaram.
Acordaram?
Puseram a cabeça no chão, olharam para o rodapé e limparam o pó com a gravata ou a écharpe.
Andam com a cabeça num país onde a culpa não existe e a incompetência merece medalhas e abraços.

São bestiais.
São dos nossos.
Os nossos são sempre cá dos nossos.
Porreiro pá. Meia bola e força.
E quem não percebe isto ou é traidor ou é fascista.

Voltei a dormir.
Acho que estou a dormir.
Acordarei?

-Sobre Jorge Barreto Xavier-

Nasceu em Goa, Índia. Formação em Direito, Gestão das Artes, Ciência Política e Política Públicas. É professor convidado do ISCTE-IUL e diretor municipal de desenvolvimento social, educação e cultura da Câmara Municipal de Oeiras. Foi secretário de Estado da Cultura, diretor-geral das Artes, vereador da Cultura, coordenador da comissão interministerial Educação-Cultura, diretor da bienal de jovens criadores da Europa e do Mediterrâneo. Foi fundador do Clube Português de Artes e Ideias, do Lugar Comum – centro de experimentação artística, da bienal de jovens criadores dos países lusófonos, da MARE, rede de centros culturais do Mediterrâneo. Foi perito da agência europeia de Educação, Audiovisual e Cultura, consultor da Reitoria da Universidade de Lisboa, do Centro Cultural de Belém, da Fundação Calouste Gulbenkian, do ACIDI, da Casa Pia de Lisboa, do Intelligence on Culture, de Copenhaga, Capital Europeia da Cultura. Foi diretor e membro de diversas redes europeias e nacionais na área da Educação e da Cultura. Tem diversos livros e capítulos de livros publicados.

Texto e fotografia de Jorge Barreto Xavier

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