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“Estamos a criar um espaço para que todos possam perceber” a experiência africana em Portugal

O mês da identidade africana é celebrado ao longo de novembro e inclui diversos eventos culturais em Lisboa de entrada livre, com vista a dar visibilidade às experiências das pessoas afrodescendentes em Portugal.

Texto de Isabel Patrício

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Fevereiro nos Estados Unidos é sinónimo de black history month [mês da história negra, numa tradução direta]. Trata-se de uma ocasião que serve para reconhecer e honrar os contributos que os afro-americanos deram para o desenvolvimento desse país. Também o Reino Unido, o Canadá e os Países Baixos têm dinamizado iniciativas semelhantes nos últimos anos, mas Portugal teimava em manter-se fora dessa lista. Até agora. O mês da identidade africana vem colmatar essa lacuna.

Em causa está uma iniciativa promovida pela BANTUMEN, plataforma de informação multimédia que se debruça sobre as culturas lusófonas negras. Em entrevista ao Gerador, Vanessa Sanches, cofundadora dessa plataforma, explica que o mês da identidade africana inclui uma cobertura editorial exclusiva – com reportagens, entrevistas e um roteiro turístico –, mas também uma série de eventos culturais em Lisboa, de entrada livre (o programa pode ser consultado na íntegra aqui).

No arranque de novembro, a Safra, no Lumiar, serviu de palco a uma exposição de artes plásticas de Alberto Funda, como aponta a responsável. E esta quarta-feira e quinta-feira, dias 15 e 16 de novembro, haverá filmes para ver no Selina Secret Garden.

Vanessa Sanches destaca que, neste programa, haverá um momento dedicado aos mais pequenos. Isto porque “tudo começa nas crianças”, incluindo a transformação rumo a uma sociedade mais inclusiva e aberta à diversidade, sublinha.

Em entrevista ao Gerador, a cofundadora da BANTUMEM – projeto que nasceu como uma revista masculina dedicada à cultura negra lusófona, mas acabou por se abrir a todos – garante que o movimento negro está vivo em Portugal, mas ainda não tem a visibilidade que já conseguiu noutros países, como em França. É que, diz Vanessa Sanches, não há vontade de reconhecer por cá verdadeiramente a multiculturalidade, porque ainda “estamos num sistema naturalmente racista”.

Importa notar que o Gerador é parceiro da BANTUMEN e participará também na programação do mês da identidade africana.

Novembro é o mês da identidade africana na BANTUMEN. É a segunda vez que promovem esta iniciativa. Antes de mais, qual é o objetivo de dedicar um mês à valorização da história e presença de afrodescendentes em Portugal?

No Brasil, há o mês da consciência negra [em novembro]. Nos Estados Unidos, há o black history month, que também existe no Reino Unido. Em Portugal, não há nada. Então, esta iniciativa faz parte da nossa vontade de empurrar para que algumas coisas aconteçam, para criar um espaço, um momento mediático para que as pessoas afrodescendentes em Portugal – estou a falar de portugueses afrodescendentes ou africanos a viverem em Portugal – possam ter alguma visibilidade. Do início ao final do mês, a nível editorial, temos uma produção exclusiva para mapear um bocadinho estas experiências e vivências. Este ano, temos algo diferente e vamos ter também algumas atividades presenciais para podermos melhor celebrar esta segunda edição.

Já vamos ao programa, mas disse que, ao contrário do que existe noutros países, em Portugal não havia nenhuma iniciativa nesse sentido. Porquê? Consegue encontrar um motivo para haver por cá menos reconhecimento da identidade africana?

Não há nada em Portugal, porque não há vontade de criar. Nem sequer sabemos quantos somos. É uma questão simples e básica, mas não há vontade política para que possamos perceber a fotografia da sociedade portuguesa. Enquanto isso não acontece, vão acontecendo algumas coisinhas paralelas promovidas pelo movimento negro que está vivo em Portugal, mas não tem visibilidade mediática.

De que modo tem sido, então, tratada a presença africana em Portugal? Tem sido, de alguma forma, ignorada? Porquê?

Tem sido ignorada, porque estamos a falar de um sistema naturalmente racista, que não tem vontade de criar transformação e de perceber que somos muitos e muito diferentes. A sociedade portuguesa é, de facto, multicultural devido à história portuguesa.

Aliás, um dos objetivos iniciais do mês da identidade africana era promover a aceitação da multiculturalidade. De que forma é que estas iniciativas podem contribuir para isso? E que outras iniciativas seriam preciso para que essa aceitação se desse efetivamente?

A multiculturalidade não é questionada quando a vemos. Às crianças, quando nascem num meio que é diverso, [a multiculturalidade] não é estranha. Quando vejo o outro, ele não me é estranho. Portanto, é criar visibilidade e conhecimento sobre quem somos e o que andamos aqui a fazer. Se tivermos essas pequeninas noções, não estranhamos a nossa normalização. No fundo, é normalizar experiências, vivências e histórias.

Como disse, em vários outros países já há iniciativas como esta do mês da identidade africana. Que lições podemos tirar das iniciativas estrangeiras?

A partir do momento em que crio referências para a minha filha, para os meus netos e bisnetos, há um sentimento de pertença. Sentem-se no seu lugar. Não há aquela dificuldade de perceber de onde é que eu sou, se me dizem que não sou daqui. É criar referências para que as próximas gerações não sintam na pele este tipo de viés.

A partir do momento em que os outros conhecem e olham para a minha cultura, eles entendem, se calhar, melhor a minha cultura. A partir do momento em que há educação sobre essa cultura, não há estranheza.

Vanessa Sanches

Criar referências: o programa do mês da identidade africana gira muito em torno da cultura. Que papel pode ter a cultura na aceitação da diversidade?

A cultura é basilar. A cultura é algo que pode transformar a sociedade. Sem cultura, não somos ninguém. A partir do momento em que os outros conhecem e olham para a minha cultura, eles entendem, se calhar, melhor a minha cultura. A partir do momento em que há educação sobre essa cultura, não há estranheza. Portanto, a transformação para mim começa a partir dessa cultura de educação. Vamos criar um espaço público para todos para que nos possamos ver, conhecer e perceber.

O que destacaria na programação do mês da identidade africana?

Temos vários eventos a acontecer. Além de toda a programação editorial, vai haver uma agenda cultural. Arrancámos com uma exposição de Alberto Funda [pintor]. Depois, tivemos no dia 9, uma performance maravilhosa centrada nas mulheres negras e no empoderamento. Foi uma performance de spoken word e dança. Vamos ter também um momento de literatura infantil, no dia 25 de novembro. E vamos ter também um workshop para que pais, mães e educadores possam criar o bichinho da literatura e a curiosidade de ler nos mais pequeninos. Esse evento vai ser aberto a adultos e a crianças. E vamos participar também da temporada de Gerador, com um debate sobre o lusotropicalismo.

Quanto ao momento dedicado à literatura infantil, porque é que não cingiram a programação só aos mais crescidos, isto é, porque é que é relevante trazer as crianças também para esta iniciativa?

O mês da identidade africana trata-se de incluir. Não há como não incluir as crianças. Tenho uma filha e, se há coisa que está sempre presente na minha memória, são os meus traumas, aquilo que vivi que não quero que ela passe. Daí termos também uma loja online que atualmente está focada em livros infantis. A ideia de criar um evento à volta da literatura infantil partiu daí. Tudo começa nas crianças. Se as crianças se sentirem representadas, há uma série de dificuldades e obstáculos que vamos estar a eliminar à partida.

Tudo começa nas crianças, disse. Então, que contributo pode dar a escola para a promoção da inclusão?

A escola tem o papel principal. Muita coisa parte da educação escolar. Se tivermos professores que olham para todos da mesma forma e compreendem os dois lados da história, as crianças vão ter uma recetividade muito diferente e vão olhar para a história de uma forma muito diferente. O papel na educação é fundamental. A forma como a história está contada nesses livros de história é fundamental.

É inevitável mencionar, a propósito, a narrativa dos descobrimentos portugueses, que ainda se ensina nas escolas. De que modo é que essa perspetiva acaba por perpetuar a discriminação?

É óbvio. Foram descobrimentos para uns e para outros, o que foi? A história é contada do ponto de vista de quem descobriu, quem chegou lá e se apoderou. É contada de uma forma muito leviana. A forma como aprendi algumas questões da colonização e escravatura passou por dizerem que vendíamos especiarias e pessoas. Não havia humanização de pessoas como eu. Estamos a falar da venda de pessoas como eu. É olhar para mim enquanto mercadoria.

Mas sente que a narrativa tem mudado nos últimos anos, nomeadamente nas escolas? Ou não tem havido esse esforço?

Acredito e espero que seja verdade que há cada vez mais consciência social sobre isto, porque é um tema que, de uma certa forma, tem ganhado alguma visibilidade, tem estado mais na ordem do dia. A partir do momento em que se fala sobre as coisas, vai haver sempre uma consciência ou outra que vai olhar para aquilo de forma diferente. Acredito que as coisas vão mudar, não ao ritmo que, se calhar, queríamos. Há 20 anos não me recordo de ter este tipo de conversas no meu círculo próximo. Hoje temos. Alguma coisa mudou.

Fora da esfera cultural, a esfera política poderia dar um contributo mais robusto para a aceitação da diversidade e para a inclusão do que tem dado? De que modo?

Sim. A partir do momento em que a esfera lá de cima reconhece um erro, o resto vai acabar por reconhecer de alguma forma também. A sociedade passaria a olhar para esta questão da colonização de uma forma bastante diferente.

Pelo que sei, não vive em Portugal, mas em França. Como é que Portugal compara com outros países, nestas questões da inclusão e diversidade?

Por exemplo, em França e em Inglaterra, o movimento negro é muito mais ativo e muito mais robusto. São outras estruturas. São lutas muito antigas e construídas há muito mais tempo, se calhar, do que em Portugal. É muito mais estruturado. Existem organizações bem sedimentadas e com muito mais visibilidade do que aqui em Portugal. Ainda assim, sinto que [as estruturas portuguesas] começam a ter cada vez mais visibilidade e apoderar-se mais do espaço mediático. As lutas são muito semelhantes, a diferença está nas estruturas que existem nos diferentes países.

Sempre existiu o movimento negro em Portugal. Já havia académicos negros em Portugal que falavam sobre a questão do racismo, da descolonização e tudo mais. Portanto, o debate não é recente. Só não tem espaço na esfera pública.

Vanessa Sanches

A BANTUMEN reconhece que este debate é recente em Portugal. Porque é que em Portugal é tão recente quando noutros países já se faz há mais tempo, tendo em conta que a presença africana por cá é secular?

Sempre existiu o movimento negro em Portugal. Já havia académicos negros em Portugal que falavam sobre a questão do racismo, da descolonização e tudo mais. Portanto, o debate não é recente. Só não tem espaço na esfera pública. Não tem visibilidade suficiente. Sente-se este movimento crescer agora e muito mais rapidamente. Isso é consequência da Internet e das redes sociais. Através das redes sociais, todos temos voz. As coisas propagam-se de uma forma muito mais rápida.

Mas há um progresso efetivo neste debate ou esse crescimento pode ser um reflexo do politicamente correto?

É um tema sensível, porque há muita gente a falar destes temas porque é politicamente fixe. Nem vou dizer politicamente correto. Mas prefiro acreditar que é feito com boa intenção. O debate está a crescer e em boa forma, espero eu.

Esta é a segunda edição do mês da identidade africana. Que balanço faz da primeira? Que lições tiraram daí?

A primeira edição aconteceu apenas de forma online. O facto de, de certa forma, unirmos o país inteiro (incluindo as ilhas) num roteiro através do qual facilmente conseguimos aceder à localização de restaurantes africanos ou de pessoas negras, de galerias de arte com obras de pintores afrodescendentes, facilita o acesso. Isto são coisas que já existem lá fora. Por exemplo, na França, há guias turísticos sobre a Paris africana. Isso cá não existe. Se tiver a informação condensada num único sítio, é muito mais rápido e mais prático e ainda tenho acesso a mais informação por arrasto. As pessoas gostaram disto, da facilidade do acesso à informação. Portanto, o feedback que tivemos das pessoas foi fantástico. Faz todo o sentido continuar com a iniciativa porque trata-se de democratizar a informação sobre estas pessoas e estas experiências negras em Portugal.

E já há uma terceira edição no forno?

Sim. Não é um trabalho fácil. Somos uma equipa muito pequenina, mas com muita vontade e ideias. Já estamos a pensar na terceira edição, num outro formato um bocadinho maior.

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