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Estremece, eleva-se e ondula

Londres. Lonjura. Longing. London. Cidade que não se aproxima de nós, que se mantém lá,…

Opinião de Sara Carinhas

Fotografia de João Silveira Ramos

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Londres. Lonjura. Longing. London. Cidade que não se aproxima de nós, que se mantém lá, à distância imensa da nossa vontade de lhe pertencer. Languidamente. Acenando-nos com o seu chá com leite.

Não consigo, como sempre na vida, contar do meu enamoramento por ela cronologicamente. São retratos aos poucos, frames que fogem e se repetem. Vejo-a sempre diferente a cada vez, porque o meu olhá-la se vai modificando. Há sítios no mundo aos quais queremos voltar porque nos é reconfortante saber que estão ali, ainda, tal como os conhecemos das primeiras vezes - como as nossas pessoas, como as nossas casas. “As minhas raízes descem cada vez mais até se enrolarem em torno de qualquer coisa de sólido que está lá bem no centro. Londres estremece. Londres eleva-se e ondula.”[1]

“Complicitè”

Sigo há muito esta companhia inglesa, dirigida por Simon McBurney, que encontrou este nome afrancesado para prestar homenagem à escola Lecoq onde alguns dos fundadores estudaram. Extraordinariamente descobri que além da sua imensa programação artística têm por hábito a construção de laboratórios dirigidos a profissionais que queiram receber um pouco do seu método de treinamento. Todos os dias pela manhã, a caminho do espaço onde iríamos trabalhar, ouvia “A Bossa Nova é Foda” do Caetano Veloso nos meus auscultadores e fazia o exercício de pensar que podia estar, naquele momento, em qualquer sítio do mundo - e que esse sítio não tinha nome, nem fronteiras, nem caixa onde encaixar.

Foi com cumplicidade envergonhada que encontrei pessoas adoráveis, muito diferentes de mim, com quem partilhar aquele espaço de brincadeira. Eu, na altura, não estava muito para aí virada, não consegui ter nenhum espírito de fair play, mas fui feliz espectadora dos outros. Foi lá que conheci o Marco Nanetti (ele vai voltar a entrar aqui nesta crónica, lá mais para o fim) - a facilidade com que ele navegava por entre as regras propostas era gritante. Muito alto e magro e sorridente, com uma sede invejável de experiência e surpresa, trazia consigo toda a Commedia dell’arte, todos os palhaços, todo o ridículo, e todo o mudo brilhante, sem qualquer esforço. “Vou guardar esta pessoa” pensei eu.

Frankie foi outro ser encantado, maravilhosx bailarinx, exímix a inventar histórias intermináveis, com quem passei irrepetíveis dias inteiros - entrávamos em lojas de roupa em segunda mão, experimentávamos tudo, comprávamos o que nunca voltaríamos a vestir, depois bebíamos chocolate quente, a seguir uma pizza, a seguir um doce outra vez, e falávamos, falávamos muito por todo lado. Só tenho de nós uma única foto que comprova que não foi alucinação inventada minha. No último dia do laboratório perguntou-me se não quereria ir com elx de carro viajar pelo país afora. É daqueles coisas que penso se não deveria ter dito que sim. Ficaríamos provavelmente perdixs no meio da estrada, sem gasolina, nem dinheiro, com o carro cheio de batatas fritas e chocolates e pessoas desconhecidas, em constante vestir de personagens que nos fizessem acreditar que a vida era um road movie. Provavelmente virou-se para outro alguém e fez o mesmo convite. Ou desistiu e voltou para a América à última hora no primeiro voo da madrugada que encontrou.

Numa das aulas fizemos um exercício do qual me lembrei há pouco tempo: cada um de nós se espalhava pela sala e de olhos vendados, com uma bola de plasticina colocada nas nossas mãos, tínhamos de construir em 3 dimensões uma figura que correspondesse à imagem que tínhamos de nós mesmos. O meu bonequinho não saiu grande coisa. Mas eu também não me permiti a grandes experiências. Foi tarefa estranha. No fim colocávamos todas as figurinhas juntas. Gostei tanto do humor que tantos tinham sobre si próprios. Que lição.

HOUSE NUMBER 1

Para mim ir a Londres não pode estar dissociado de ir abraçar a minha irmã Olguinha e de lhe roubar um pouco de tempo do seu A Portuguese Love Affair - publicidade descarada à sua loja e ao seu restaurante/café e título perfeito da minha relação com a cidade.

A Olguinha e a Dina são duas guerreiras inesgotáveis - salvé a todos os que trabalham na restauração! Elas fazem destas suas casas sítios de encontro e de família, verdadeiras plataformas de diálogo entre portugueses, emigrantes, ingleses… pessoas do mundo. São mais do que faladoras e curiosas, sempre com uma brincadeira a fazer na ponta da língua. Se as pessoas se distraírem podem ganhar de repente duas amigas para a vida. Eu aprendi a viver com elas ali dentro. Vendo-as cozinhar, sobreviver, sorrir, vendo-as dar grandes saltos corajosos nas suas vidas. O orgulho é imenso. E saber que o Brexit as maltrata e que ainda assim elas sabem do seu direito de pertença é ainda mais digno da minha vénia.

Em plena pandemia entregaram refeições porta a porta e não desistiram de servir e ajudar os outros. Comida e amor como bálsamo.

HOUSE NUMBER 2

Sair no metro de Westminster, fingir que não sei o caminho, passar pelo Big Ben e pensar em Clarissa Dalloway. Passar a ponte de Westminster e andar sempre com o Tamisa à esquerda. Sentir-me finalmente da cidade. Ver o London Eye e achá-lo turístico, achá-lo piroso, achá-lo romântico. Percorrer Waterloo (cantar para dentro a canção dos ABBA) e parar no National Theatre. Sonhar fazer parte de, um dia. Fazer uma pilha de livros nos braços para trazer comigo. Mais um souvenir só para mim. Mais outro para alguém. E estudar o que está em cartaz. Comprar um bilhete de última hora (acabo sempre por achar que temos muito bom Teatro no nosso país e que nos menosprezamos muito em relação ao “lá fora”). Desejar sempre conhecer tudo melhor por dentro. Estar mais feliz agora. Estar com mais fome agora. Andar mais agora, mais pesada agora. Esperar chegar até à Tate Modern. Pensar pelo caminho em todas as vezes que fiz aquele caminho sozinha. Na Tate tentar resistir à loja. Resistir ao capitalismo forçado. Correr até à sala do Rothko e querer sempre que toda a minha gente esteja comigo naquele momento, antes de entrar na sala. Desejar que todo o mundo pudesse ter à mão um teatro e um museu.  “Uma pintura vive da companhia que lhe é feita, expandindo-se e precipitando-se aos olhos do observador sensível. E morre pelo mesmo motivo.”[2] - temo não gostar aqui da palavra “sensível”, como se houvessem olhos mais capazes do que outros. Não. Aqueles quadros de cores a transbordar de si próprias, naquela sala escurecida, são verdadeiros santuários milagrosos. As pessoas começam a falar mais baixo, sentem que têm de se sentar, e mergulham irremediavelmente para dentro dos grandes quadros. Deixamos de ser do tamanho do nossos corpo. Desejamos ser aquele vermelho-todos-os-vermelhos. É uma grande emoção.

HOUSE NUMBER 3

Querida Susana, esta casa é tua. Vais espantar-te por completo por ter escolhido inserir-te. A verdade é que ir ter contigo a Londres completa o meu mapa da cidade. Lembras-te quando fomos comer a Chinatown? E de quando me pintaste e cortaste o cabelo a primeira vez? E será que sabes o quanto me és importante, o quanto gosto de ter saber feliz?

Caro leitor, a Susana fez comigo o meu primeiro trabalho como actriz (vá semi-a-caminho-actriz) numa curta-metragem de Rui Simões, “Os meus espelhos”. Lembro-me quando maquilhou cada uma das minhas costelas, para eu parecer mais magra. E de como me pintou os meus primeiros lábios vermelhos. A sua presença era uma benção. Quando mais tarde descobrimos que estávamos as duas a viver em Nova Iorque e depois de novo em Londres não pudemos deixar de achar que o cosmos nos queria alguma coisa. Havemos de partilhar a vida assim, longe e perto, e nos momentos que fizerem sentido. E sempre que eu tiver uma crise de cabelo e precisar que seja ela a modificar-me a cabeça.

“L i m b o"

Lembram-se daquele Marco que apareceu lá no início? Aqui vem ele, já mais careca, vestido de inverno com o seu casaco verde e olhar doce. E ali o Pierre, o António, a Náná, a Filomena. O mundo girou tanto que fizemos um espectáculo, todos juntos, que teve a sorte de regressar ao sítio onde talvez, de alguma forma, tenha nascido - no momento em que eu disse para mim “vou guardar esta pessoa”.

Fomos aceites pelo festival VAULT, após vários empurrões do Marco que nos fizeram não desistir de embarcar numa tarefa que nada seria sobre ganhar dinheiro mas sobre contar as nossas histórias a mais pessoas. Estivemos lá no limite de sermos apanhados pela pandemia que se alastrava já, sem que lhe déssemos grande atenção. A nossa sala chamava-se “Cavern” - um túnel imenso e húmido, todo feito de pedra, em cima do qual passavam comboios que faziam gemer o espaço: “Tum-tum-tum-tum, tum-tum-tum-tum”. Se as condições foram na base do “salve-se quem puder", a experiência de construir o nosso limbo ali, num lugar impossível, foi inesquecível. O silêncio pesado, o espaço vazio em volta do público, a experiência da tradução das nossas palavras e a mistura das línguas, o som do comboio a misturar-se com o som de todos, e a tentativa do desenho da felicidade com a guerra lá fora. Arrepios.

“Náná - At first all is well, and she’s very happy. At the end of the evening, she gets tired and wants to go home - but the red shoes are not tired. In fact, the red shoes are never tired. They dance her through night and day. Time rushes by. Love rushes by. Life rushes by. But the red shoes keep dancing. (Pausa) E o que é que acontece no fim?

Filomena - No fim, ela morre.

Náná - Ah sim. In the end she dies”

Se eu pudesse ser como a Dorothy e bater com os calcanhares dos meus sapatos vermelhos enquanto repito várias vezes, de olhos fechados “there’s no place like home”, desejaria um sítio onde pudesse misturar tudo… inventava um sítio novo, um sítio que será, onde um bocadinho de tudo pudesse existir, antes de acontecer o que acontece no fim.


[1] Woolf, Virginia; As Ondas; (trad. Lucília Rodrigues), Colecção Mil Folhas; Porto; 2002.
[2] Rothko, Mark; A realidade do artista - filosofias da arte; (trad. Fernanda Mira Barros); Cotovia; Lisboa; 2007.

-Sobre Sara Carinhas-

Nasceu em Lisboa, em 1987. Estuda com a Professora Polina Klimovitskaya, desde 2009, entre Lisboa, Nova Iorque e Paris. É licenciada em Estudos Artísticos pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Estreando-se como actriz em 2003 trabalhou em Teatro com Adriano Luz, Ana Tamen, Beatriz Batarda, Cristina Carvalhal, Fernanda Lapa, Isabel Medina, João Mota, Luís Castro, Marco Martins, Nuno Cardoso, Nuno M. Cardoso, Nuno Carinhas, Olga Roriz, Ricardo Aibéo, e Ricardo Pais. Em 2015 é premiada pela Sociedade Portuguesa de Autores de melhor actriz de teatro, recebe a Menção Honrosa da Associação Portuguesa de Críticos de teatro e o Globo de Ouro de melhor actriz pela sua interpretação em A farsa de Luís Castro (2015). Em cinema trabalhou com os realizados Alberto Seixas Santos, Manoel de Oliveira, Pedro Marques, Rui Simões, Tiago Guedes e Frederico Serra, Valeria Sarmiento, Manuel Mozos, Patrícia Sequeira, João Mário Grilo, entre outros. Foi responsável pela dramaturgia, direcção de casting e direcção de actores do filme Snu de Patrícia Sequeira. Foi distinguida com o prémio Jovem Talento L’Oreal Paris, do Estoril Film Festival, pela sua interpretação no filme Coisa Ruim (2008). Em televisão participou em séries como Mulheres AssimMadre Paula e 3 Mulheres, tendo sido directora de actores, junto com Cristina Carvalhal, de Terapia, realizada por Patrícia Sequeira. Como encenadora destaca “As Ondas” (2013) a partir da obra homónima de Virginia Woolf, autora a que regressa em “Orlando” (2015), uma co-criação com Victor Hugo Pontes. Em 2019 estreia “Limbo” com sua encenação, espectáculo ainda em digressão pelo país, tendo sido recentemente apresentado em Londres. Assina pela segunda vez o “Ciclo de Leituras Encenadas” no Jardim de Inverno do São Luiz Teatro Municipal.

Texto de Sara Carinhas
Fotografia de João Silveira Ramos
A opinião expressa pelos cronistas é apenas da sua própria responsabilidade.

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