Será possível adaptar a obra de Herberto Helder ao teatro? A resposta a esta pergunta pode gerar desconfiança, sobretudo para os leitores mais incisivos do poeta português, falecido em 2015. Não obstante, o desafio dessa transposição textual serviu de mote para a peça “Passos em Volta”, da Companhia João Garcia Miguel, que chega esta quarta-feira, dia 19 de junho, ao Teatro Ibérico, em Lisboa.
No palco um andaime com duas escadarias e três níveis de altura serve de cenário idílico para o entrosamento necessário dos atores à imagética e ao espaço de indagação a que o poeta nos remete através de 23 histórias presentes no seu livro “Os Passos em Volta”, publicado originalmente em 1963.
A peça construída como “manta de retalhos” enforma-se pela escolha de alguns textos do livro como “Estilo”, “Lugar Lugares” ou “Duas Pessoas” que são interpretados pelos atores João Lagarto, David Pereira Bastos e Duarte Melo e que, em analogia, representam a própria figura de Herberto Helder, em três fases distintas de vida: a adolescência, a maioridade e a velhice.
Em entrevista ao Gerador, o encenador João Garcia Miguel falou da “tarefa muito pouco sensata” com que teve que lidar na escolha dos textos, mantendo também a preocupação perante o entendimento do espectador “no tempo do teatro e não no da leitura do Heberto”, refere.
“Interessa-me que estes textos possam ser teatro. O teatro tem possibilidades que a literatura não tem e vice-versa. O que estamos a propor não é uma leitura do livro, mas sim, uma forma de abordarmos aquilo que, de alguma maneira, o mundo do Herberto nos permite a nós recriarmos uma ficção”, explica.
Consciente dos diferentes impactos que a obra pode provocar, João Garcia Miguel decidiu trabalhar na nova peça de forma fragmentada, onde fosse possível “criar um diálogo entre textos” e dessa forma propor uma reflexão sobre o “nosso próprio caos interior”, realça. “Acho que nisso os textos do Herberto são maravilhosos e são um mergulho profundo na constituição da nossa própria interioridade”, acrescenta.
Na preparação do espetáculo foram feitos workshops, que permitiram uma “construção e rescrita sucessiva” das cenas em colaboração permanente com os próprios atores. Nesse sentido, João Garcia Miguel foi também estruturando os aspetos cénicos da peça, onde teria que haver a “ideia de escadaria, de despojamento máximo, de subida ao céu e descida aos infernos”, o que explica a escolha do andaime para o cenário.
“Este cenário tem a ver com as cidades, com os portos e tem um lado de construção operária, também presente no grupo dos surrealistas” por onde o poeta passou. “Porque no fundo são textos dele à volta de uma experimentação da liberdade. Tal como os surrealistas, os textos d’”Os Passos em Volta” têm esta ideia de substituir a vida, de dar uma outra vida à vida. Essa é também a construção do Herberto: de construir uma vida dentro da própria vida. Esta ideia de ir experimentando sucessivamente um caminho na busca de uma solidão, de uma ascese e de uma misantropia”, sublinha.
No sentido de ir contra uma certa ideia mais convencional de teatro, a nova peça da companhia é também por isso marcada na relação com o espaço, com o tempo, espelhada por exemplo no aspeto coreográfico da ideia de passos em volta, revisitada ao longo do espetáculo.
Por outro lado, para além dos atores mencionados, “Passos em Volta” conta também com interpretações de Lara Guidetti e Beatriz Godinho, somente em elementos coreográficos, mas que deixam patente a forte “presença do feminino e da figura da mulher” na obra do autor nascido no Funchal, na ilha da Madeira, em 1930.
Com muitas possibilidades de leitura, e perante um conjunto de textos com grande simbolismo e alguns apontamentos biográficos da vida de Herberto, João Garcia Miguel espera também que a peça faça com que o poeta seja mais “sentido, vivido, partilhado e visto noutras perspetivas”. Para o encenador, trata-se de um autor que deu uma grande contribuição ao “colocar em palavras aquilo que hoje sentimos. Se com ele que houver mais gente a sentir-se viva e a sentir que tem de mudar de vida, então é também ele serve como um grande andaime”, termina.
As apresentações de “Passos em Volta” no Teatro Ibérico estão marcadas entre 19 e 22 e de 26 a 29 de junho. Depois disso a peça, que teve antestreia no Arquipélago – Centro de Artes Contemporâneas, no Açores, segue caminho para outras paragens, nomeadamente Setúbal, Sintra, Torres Vedras, Santarém e Porto.