Se tiver de pensar na primeira vez em que fui realmente sincera na vida — com a certeza de que outras existiram antes dessa, de que não me recordo —, lembro-me de uma tarde em que um adulto que tinha acabado de me conhecer, tinha eu uns seis ou sete anos, me perguntou “gostas de mim?” e, com a maior naturalidade, respondi “não”. Não sei porque o disse, mas foi o que me pareceu normal. E, se bem me lembro, nem franzi a testa, nem me escondi por detrás de alguém. Fiquei a assumir o “não”.
Sempre que penso nessa história, tento recuperar mais detalhes da memória completa. Depois da minha resposta negativa, outra pessoa adulta que estava por perto chamou-me à atenção. Não é suposto dizermos que não gostamos de alguém. E agora que olho para trás, sei que ela tinha razão. Não havia necessidade. Eu disse que não gostava da pessoa, a própria pensou “como não?” e até ao dia de hoje ambas nos lembramos desse confronto inocente (?). Durante alguns anos, sempre que alguém me dizia algo sob a senda de estar “a ser frontal”, eu lembrava-me dessa história. Mas a linha entre ser frontal e ser brutalmente sincerx foi-se tornando cada vez menos fina para mim.
— Olá, sou X, tenho X anos e um dos meus defeitos é ser frontal.
— Olá, sou X, tenho X anos e uma das minhas qualidades é ser frontal.
Perdi a conta ao número de apresentações em reality shows em que ser “frontal” serviu tanto de qualidade como de defeito. Em reality shows e na vida real, agora que penso. Esse sem número de vezes fez-me questionar até que ponto queria ser sincera ou frontal; até que ponto é possível dizer a verdade sem ser desagradável. Como é que posso ser sincera sem ter de usar o escudo de que “sou frontal” à priori?
Foi quando ouvi Fran Lebowitz em Pretend it’s a City, a série que fez a meias com Martin Scorsese, que voltei a reconfigurar esses conceitos. Fran diz o que sente, sobre tudo e sobre todxs, correndo o risco de ser mal interpretada. Diz que não aprecia desporto, diz que acha uma parvoíce que se aplauda uma peça de arte quando é vendida num leilão (porque é que não se aplaude a obra, mas sim o seu preço?), diz que não tem guilty pleasures porque não tem de se sentir culpada por gostar do que gosta só porque não é consensual. Nas críticas que têm saído em jornais e sites generalistas e especializados, há quem diga (e não são poucos) que Fran gosta de ser do contra e diz mal de tudo. Ao que a própria responde — “não sou mesmo uma pessoa do contra”. E não é, só diz o que sente, mesmo que isso signifique que está a andar na direção contrária à maré.
Não posso dizer que me revejo totalmente em Fran, até porque em Pretend It’s a City a ouvimos mais a falar sobre o que não gosta do que sobre o que gosta (calculo que a ideia de Scorsese fosse essa, mesmo) e ela, que nunca vai ler este texto, acharia ridículo eu estar à procura de me encontrar numa série em que o “eu” central é ela. Mas foi a sinceridade brutal de Fran que inevitavelmente me levou a querer recuperar a minha — que talvez tenha ficado perdida nos primórdios da minha adolescência.
Cresci — crescemos — a acreditar que dizer que não queremos ou não conseguimos é dar a parte fraca, que dizer que não gostamos de algo ou de alguém é ser desagradável, e que manter a nossa posição no meio de uma maré de visões diferentes da nossa não está certo. E se é verdade que discordar nos pode trazer desconforto, pelo confronto natural que advém da discórdia, só a possibilidade de dizer “não” é que nos traz a verdadeira emancipação e uma sensação de libertação. Porque, como lembra Fran, dizer o contraditório não é ser do contra. “O que acaba por acontecer, claro, é que grande parte das coisas que digo ou em que acredito são contrárias àquilo que grande parte das pessoas pensa, mas não as digo apenas por essa razão” — é a justificação de Lebowitz que me parece totalmente válida.
Não estamos habituadxs, porque ninguém nos habitua ou estimula, a dizer o contraditório, quando é o caso de pensarmos algo que não faz parte da opinião maioritária. Não estamos habituadxs a ser sempre sincerxs. Fingimos que já vimos filmes ou lemos livros para causar boa impressão, dizemos que sim a quem exige mais de nós quando por dentro nos convencemos de que não íamos tolerar mais, ficamos em silêncio quando sentimos que somos a única pessoa na sala que diria “isso é absurdo”. Quando o fazemos, passamos a ser a pessoa do contra, a maldisposta, aquela que não está a conseguir ver o lado bom das coisas — quando, às tantas, estamos a ver as camadas de cinzento e a sugerir que há mais para ver e analisar.
As redes sociais intensificam esta experiência de controlo daquilo que queremos realmente dizer. Por lá — seja no Twitter, no Facebook ou noutra — não existem camadas cinzentas. Ou estamos do lado dos bons ou dos maus. Nestes lugares onde se gera um simulacro do espaço público (Barata, 2018), o contraditório parece surgir sempre como ataque, o debate é, grande parte das vezes, uma ficção, e não há espaço para ouvir — porque não há tempo. E o perigo de viver num sistema binário, onde há apenas verdade ou mentira, bom e mau, é que a verdade e a mentira se confundem e o bom e o mau, também. A certa altura, sabemos que é suposto estarmos de um dos lados, o que nos parecer melhor, mas são raras as vezes em que nos atrevemos a questionar.
“Uma cultura de resposta argumentada do ‘concordo’ e do ‘discordo’ e do ‘diga lá porquê’ é o tipo de filtro que as redes sociais devem incorporar. (...) A linguagem toda faz falta”, diz-nos André Barata em E se parássemos de sobreviver?.
Será que algum dia vamos poder voltar a discordar sem que pareça que queremos entrar em confronto? Será que algum dia vamos poder ser honestxs sem termos de dar o aviso prévio de que somos “uma pessoa frontal” ?
A homogeneização dos gostos e das posições perante os trending topics nas redes sociais transporta, inevitavelmente, a homogeneização para a vida real — ou será o contrário? Temos cada vez menos tempo, precisamos de ser cada vez mais eficientes e, por isso, convém que nos saibamos posicionar rapidamente e, se possível, de acordo com o que esperam de nós. Mas tem de haver espaço para a discórdia, para poder dizer “não” e quem está do outro lado perguntar “porque não?”, estando dispostx a ouvir a justificação. Tem de haver tempo e espaço para a discórdia, porque é no debate que encontramos o verdadeiro progresso.
Se voltar àquela tarde da infância, em frente ao prédio onde vivi os primeiros quinze anos da minha vida, questiono-me se teria sido diferente se os adultos me tivessem perguntado “porque não?”. Talvez não fizesse grande diferença. Mas quero recuperar desse momento o que, com o tempo, deixei de conseguir fazer: o direito a discordar e a dizer o que não é esperado, com a naturalidade de quem espera que do lado de lá haja tempo e espaço para ouvir porque não.
Referência Bibliográfica
Barata, André (2018) E se parássemos de sobreviver? Pequeno livro para agir contra a ditadura do tempo , Lisboa: Documenta
-Sobre Carolina Franco-
A Carolina Franco é jornalista no Gerador. Nascida no Porto, em 1997, aprofundou o seu interesse e conhecimento na cultura e na arte enquanto estudou na Escola Artística de Soares dos Reis. Licenciada em Ciências da Comunicação pela Universidade Lusófona do Porto, viveu quatro meses em Ljubljana, na Eslovénia, onde teve a oportunidade de ser envolvida pela cultura pós-jugoslava e estudar Ciências Sociais. Entre 2018 e 2019 frequentou a pós-graduação em Curadoria de Arte da Universidade Nova de Lisboa – FCSH. Graças a estas experiências, tornou-se mais interessada no papel da cultura na sociedade em geral e nas comunidades locais – uma relação que procura aprofundar cívica e profissionalmente.