fbpx
Apoia o Gerador na construção de uma sociedade mais criativa, crítica e participativa. Descobre aqui como.

Faz de conta que podes ser sempre sincerx

Se tiver de pensar na primeira vez em que fui realmente sincera na vida —…

Opinião de Carolina Franco

Apoia o Gerador na construção de uma sociedade mais criativa, crítica e participativa. Descobre aqui como.

Se tiver de pensar na primeira vez em que fui realmente sincera na vida — com a certeza de que outras existiram antes dessa, de que não me recordo —, lembro-me de uma tarde em que um adulto que tinha acabado de me conhecer, tinha eu uns seis ou sete anos, me perguntou “gostas de mim?” e, com a maior naturalidade, respondi “não”. Não sei porque o disse, mas foi o que me pareceu normal. E, se bem me lembro, nem franzi a testa, nem me escondi por detrás de alguém. Fiquei a assumir o “não”. 

Sempre que penso nessa história, tento recuperar mais detalhes da memória completa. Depois da minha resposta negativa, outra pessoa adulta que estava por perto chamou-me à atenção. Não é suposto dizermos que não gostamos de alguém. E agora que olho para trás, sei que ela tinha razão. Não havia necessidade. Eu disse que não gostava da pessoa, a própria pensou “como não?” e até ao dia de hoje ambas nos lembramos desse confronto inocente (?). Durante alguns anos, sempre que alguém me dizia algo sob a senda de estar “a ser frontal”, eu lembrava-me dessa história. Mas a linha entre ser frontal e ser brutalmente sincerx foi-se tornando cada vez menos fina para mim. 

— Olá, sou X, tenho X anos e um dos meus defeitos é ser frontal.

— Olá, sou X, tenho X anos e uma das minhas qualidades é ser frontal. 

Perdi a conta ao número de apresentações em reality shows em que ser “frontal” serviu tanto de qualidade como de defeito. Em reality shows e na vida real, agora que penso. Esse sem número de vezes fez-me questionar até que ponto queria ser sincera ou frontal; até que ponto é possível dizer a verdade sem ser desagradável. Como é que posso ser sincera sem ter de usar o escudo de que “sou frontal” à priori? 

Foi quando ouvi Fran Lebowitz em Pretend it’s a City, a série que fez a meias com Martin Scorsese, que voltei a reconfigurar esses conceitos. Fran diz o que sente, sobre tudo e sobre todxs, correndo o risco de ser mal interpretada. Diz que não aprecia desporto, diz que acha uma parvoíce que se aplauda uma peça de arte quando é vendida num leilão (porque é que não se aplaude a obra, mas sim o seu preço?), diz que não tem guilty pleasures porque não tem de se sentir culpada por gostar do que gosta só porque não é consensual. Nas críticas que têm saído em jornais e sites generalistas e especializados, há quem diga (e não são poucos) que Fran gosta de ser do contra e diz mal de tudo. Ao que a própria responde — “não sou mesmo uma pessoa do contra”. E não é, só diz o que sente, mesmo que isso signifique que está a andar na direção contrária à maré. 

Não posso dizer que me revejo totalmente em Fran, até porque em Pretend It’s a City a ouvimos mais a falar sobre o que não gosta do que sobre o que gosta (calculo que a ideia de Scorsese fosse essa, mesmo) e ela, que nunca vai ler este texto, acharia ridículo eu estar à procura de me encontrar numa série em que o “eu” central é ela. Mas foi a sinceridade brutal de Fran que inevitavelmente me levou a querer recuperar a minha — que talvez tenha ficado perdida nos primórdios da minha adolescência. 

Cresci — crescemos — a acreditar que dizer que não queremos ou não conseguimos é dar a parte fraca, que dizer que não gostamos de algo ou de alguém é ser desagradável, e que manter a nossa posição no meio de uma maré de visões diferentes da nossa não está certo. E se é verdade que discordar nos pode trazer desconforto, pelo confronto natural que advém da discórdia,  só a possibilidade de dizer “não” é que nos traz a verdadeira emancipação e uma sensação de libertação. Porque, como lembra Fran, dizer o contraditório não é ser do contra. “O que acaba por acontecer, claro, é que grande parte das coisas que digo ou em que acredito são contrárias àquilo que grande parte das pessoas pensa, mas não as digo apenas por essa razão” — é a justificação de  Lebowitz que me parece totalmente válida. 

Não estamos habituadxs, porque ninguém nos habitua ou estimula, a dizer o contraditório, quando é o caso de pensarmos algo que não faz parte da opinião maioritária. Não estamos habituadxs a ser sempre sincerxs. Fingimos que já vimos filmes ou lemos livros para causar boa impressão, dizemos que sim a quem exige mais de nós quando por dentro nos convencemos de que não íamos tolerar mais, ficamos em silêncio quando sentimos que somos a única pessoa na sala que diria “isso é absurdo”. Quando o fazemos, passamos a ser a pessoa do contra, a maldisposta, aquela que não está a conseguir ver o lado bom das coisas — quando, às tantas, estamos a ver as camadas de cinzento e a sugerir que há mais para ver e analisar.

As redes sociais intensificam esta experiência de controlo daquilo que queremos realmente dizer. Por lá — seja no Twitter, no Facebook ou noutra — não existem camadas cinzentas. Ou estamos do lado dos bons ou dos maus. Nestes lugares onde se gera um simulacro do espaço público (Barata, 2018), o contraditório parece surgir sempre como ataque, o debate é, grande parte das vezes, uma ficção, e não há espaço para ouvir — porque não há tempo. E o perigo de viver num sistema binário, onde há apenas verdade ou mentira, bom e mau, é que a verdade e a mentira se confundem e o bom e o mau, também. A certa altura, sabemos que é suposto estarmos de um dos lados, o que nos parecer melhor, mas são raras as vezes em que nos atrevemos a questionar. 

“Uma cultura de resposta argumentada do ‘concordo’ e do ‘discordo’ e do ‘diga lá porquê’ é o tipo de filtro que as redes sociais devem incorporar. (...) A linguagem toda faz falta”, diz-nos André Barata em E se parássemos de sobreviver?

Será que algum dia vamos poder voltar a discordar sem que pareça que queremos entrar em confronto? Será que algum dia vamos poder ser honestxs sem termos de dar o aviso prévio de que somos “uma pessoa frontal” ?

A homogeneização dos gostos e das posições perante os trending topics nas redes sociais transporta, inevitavelmente, a homogeneização para a vida real — ou será o contrário? Temos cada vez menos tempo, precisamos de ser cada vez mais eficientes e, por isso, convém que nos saibamos posicionar rapidamente e, se possível, de acordo com o que esperam de nós. Mas tem de haver espaço para a discórdia, para poder dizer “não” e quem está do outro lado perguntar “porque não?”, estando dispostx a ouvir a justificação. Tem de haver tempo e espaço para a discórdia, porque é no debate que encontramos o verdadeiro progresso. 

Se voltar àquela tarde da infância, em frente ao prédio onde vivi os primeiros quinze anos da minha vida, questiono-me se teria sido diferente se os adultos me tivessem perguntado “porque não?”. Talvez não fizesse grande diferença. Mas quero recuperar desse momento o que, com o tempo, deixei de conseguir fazer: o direito a discordar e a dizer o que não é esperado, com a naturalidade de quem espera que do lado de lá haja tempo e espaço para ouvir porque não. 

Referência Bibliográfica

Barata, André (2018) E se parássemos de sobreviver? Pequeno livro para agir contra a ditadura do tempo , Lisboa: Documenta

-Sobre Carolina Franco-

A Carolina Franco é jornalista no Gerador. Nascida no Porto, em 1997, aprofundou o seu interesse e conhecimento na cultura e na arte enquanto estudou na Escola Artística de Soares dos Reis. Licenciada em Ciências da Comunicação pela Universidade Lusófona do Porto, viveu quatro meses em Ljubljana, na Eslovénia, onde teve a oportunidade de ser envolvida pela cultura pós-jugoslava e estudar Ciências Sociais. Entre 2018 e 2019 frequentou a pós-graduação em Curadoria de Arte da Universidade Nova de Lisboa – FCSH. Graças a estas experiências, tornou-se mais interessada no papel da cultura na sociedade em geral e nas comunidades locais – uma relação que procura aprofundar cívica e profissionalmente.

Texto de Carolina Franco
Fotografia da cortesia de Carolina Franco

Publicidade

Se este artigo te interessou vale a pena espreitares estes também

18 Abril 2024

Bitaites da Resistência: A Palestina vai libertar-nos a nós

16 Abril 2024

Gira o disco e toca o mesmo?

16 Abril 2024

A comunidade contra o totalitarismo

11 Abril 2024

Objeção de Consciência

9 Abril 2024

Estado da (des)União

9 Abril 2024

Alucinações sobre flores meio ano depois

4 Abril 2024

Preliminares: É possível ser-se feliz depois de um abuso?

4 Abril 2024

Eles querem-nos na guerra

2 Abril 2024

Defesa da Europa

2 Abril 2024

O dia em que o relógio parou

Academia: cursos originais com especialistas de referência

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Fundos Europeus para as Artes e Cultura I – da Ideia ao Projeto

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

O Parlamento Europeu: funções, composição e desafios [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Viver, trabalhar e investir no interior [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Introdução à Produção Musical para Audiovisuais [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Pensamento Crítico [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Narrativas animadas – iniciação à animação de personagens [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Soluções Criativas para Gestão de Organizações e Projetos [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Iniciação à Língua Gestual Portuguesa [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Comunicação Cultural [online e presencial]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Jornalismo e Crítica Musical [online ou presencial]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Práticas de Escrita [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Planeamento na Comunicação Digital: da estratégia à execução [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Planeamento na Produção de Eventos Culturais [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Iniciação ao vídeo – filma, corta e edita [online]

Duração: 15h

Formato: Online

Investigações: conhece as nossas principais reportagens, feitas de jornalismo lento

22 ABRIL 2024

A Madrinha: a correspondente que “marchou” na retaguarda da guerra

Ao longo de 15 anos, a troca de cartas integrava uma estratégia muito clara: legitimar a guerra. Mais conhecidas por madrinhas, alimentaram um programa oficioso, que partiu de um conceito apropriado pelo Estado Novo: mulheres a integrar o esforço nacional ao se corresponderem com militares na frente de combate.

1 ABRIL 2024

Abuso de poder no ensino superior em Portugal

As práticas de assédio moral e sexual são uma realidade conhecida dos estudantes, investigadores, docentes e quadros técnicos do ensino superior. Nos próximos meses lançamos a investigação Abuso de Poder no Ensino Superior, um trabalho jornalístico onde procuramos compreender as múltiplas dimensões de um problema estrutural.

A tua lista de compras0
O teu carrinho está vazio.
0