À entrada para o bairro, o alerta de segurança torna-se incontornável: o quartel-general da Polícia Municipal de Oeiras ‘engole’ a paisagem. Com ele invade-me a sensação de vigilância repressora que – posso apenas imaginar –, talvez active, noutras vivências, o sentimento de segurança protectora.
Nesse momento, que marca a minha primeira visita ao Alto dos Barronhos, sigo viagem por memórias de abusos policiais (agarra que é polícia) e reflicto – uma vez mais – na urgência de enfrentarmos, colectiva e efectivamente, o cerco que o racismo impõe às nossas vidas.
Vem-me à cabeça uma passagem do documentário “Chelas nha kau”, em que uma mãe relata um caso de violência policial que viveu no bairro.
“Estávamos aqui numa festa até mandarem vir acabar com ela e começarem a bater nos rapazes. A minha filha assistiu àquilo, a gritar aos berros. Desde aquele dia ela detesta os polícias, acha que são maus”.
Apesar dos esforços da mãe para explicar à criança que nem todos os agentes fazem mal o seu trabalho, o trauma continua presente. “Agora ela vai crescer com um ver diferente”.
É esse “ver diferente” que me acompanha à chegada ao Alto dos Barronhos, palco de um ciclo de quatro debates que, até ao próximo sábado, 25, tenho o privilégio de moderar.
A iniciativa, intitulada “4 Debates em Arquitectura: Espaços Reais| Espaços Mentais”, insere-se no projecto "910 Fogos: Espaços Reais, Espaços Mentais", desenvolvida pela efabula no âmbito do Programa Bairros Saudáveis.
Com três encontros já realizados, sempre aos sábados a partir das 16h30, detenho-me no “ver diferente”. Sobretudo de quem habita o bairro, mas também de quem, pelo tempo da execução de um ou mais projectos, se aproxima das suas vivências.
Para começar: “Como é que os lugares determinam a saúde mental de quem lá vive e como podem os espaços inspirar o bem-estar? Como é que a arquitectura delineia a apropriação emocional que humaniza o espaço? E como potencia dificuldades, resistências, esforços e lutas? Como fomenta o conforto e a felicidade? E como estigmatiza?”.
Embora essas tenham sido as questões de partida para o primeiro debate, acredito que elas atravessam todas as discussões que possamos ter sobre os nossos bairros sociais – sobretudo os mais periféricos – ,“minados” de forças de exclusão.
Seja pela relação policial que se estabelece com as autoridades; seja pela insuficiência de acessibilidades; seja pela falta de cuidados de saúde – física e mental –; seja pela “arrumação” desumanizada do espaço…
O mapa de barreiras sociais erguidas pelo espaço que se habita – agravadas, entre outros factores de discriminação, por marcadores étnico-raciais – delimita realidades de segregação territorial e humana que o sistema persiste em invisibilizar, visibilizando as disfunções que reproduz.
O problema dos bairros, repete-se nas notícias, está no desemprego, criminalidade e especificidades culturais dos moradores, pouco dados à “integração” – vulgo perfeição, vulgo assimilação, vulgo “comer e calar”. Já sobre o impacto das decisões políticas que acentuam contextos de marginalização, encaixotando vidas como quem despacha objectos nem uma palavra, nem uma proposta de discussão pública.
Como reagiríamos se estivéssemos a falar de bairros habitados por “corpos de pele clara e olhos azuis?”.
Inquieta-me que, enquanto sociedade, sejamos tão rápidos e apaixonados na condenação de muros além-fronteiras – livrai-nos senhor de todos os Trumps – e, ao mesmo tempo, tão incapazes de enxergar as fortificações que existem a dois palmos da nossa casa. Imagino como seria se todos nos disponibilizássemos, por umas horas que fosse, a sair das bolhas em que vivemos, e a “ver diferente”. Talvez conseguíssemos transformar em laços muitos dos nós que nos sufocam!
-Sobre a Paula Cardoso-
Fundadora da comunidade digital “Afrolink”, que visibiliza profissionais africanos e afrodescendentes residentes em Portugal ou com ligações ao país, é também autora da série de livros infantis “Força Africana”, projetos desenvolvidos para promover uma maior representatividade negra na sociedade portuguesa. Com o mesmo propósito, faz parte da equipa do talk-show online “O Lado Negro da Força”, e apresenta a segunda temporada do “Black Excellence Talk Series”, formato transmitido na RTP África. Integra ainda o Fórum dos Cidadãos, que visa contribuir para revigorar a democracia portuguesa, bem como o programa de mentoria HeforShe Lisboa. É natural de Moçambique, licenciou-se em Relações Internacionais e trabalhou como jornalista durante 17 anos, percurso iniciado na revista Visão. Assina a crónica “Mutuacção” no Setenta e Quatro, projecto digital de jornalismo de investigação, e pertence à equipa de produção de conteúdos do programa de televisão Jantar Indiscreto.