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Filantropia: Como resiste o amor à humanidade em Portugal?

O baixo desempenho filantrópico português, quando comparado ao restante dos países europeus, já levou a que análises do histórico económico nacional justificassem o cenário enfraquecido. Todavia, a leitura atual dos especialistas é positiva e indica que, à escala do país, a cultura de filantropia em Portugal tem acompanhado as tendências do mundo ocidental – deixa-se de identificar, com frequência, as tradicionais contribuições vindas de indivíduos com grandes fortunas e passa-se a testemunhar um movimento de colaboração corporativista.

Texto de Analú Bailosa

Ilustração de Marina Mota

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O histórico da filantropia atesta que o conceito – do grego philos (amor) e anthropos (homem) – foi originado pelo imperador romano Flavio Claudio Juliano, responsável por restaurar o paganismo como religião dos romanos, utilizando o termo em equiparação à ideia cristã de caridade. É com a Revolução Industrial e o capitalismo, no entanto, que surge a ideia moderna de filantropia, face à “extrema miséria” em que vivia a classe operária, esclarece, ao Gerador, o sociólogo Luís Capucha.

“Certas elites entendiam que tinham permissão para contribuir no sentido da melhoria das condições de vida das classes trabalhadoras”, afirma Capucha, também professor e diretor do Departamento de Ciência Política e Políticas Públicas do ISCTE-IUL. Na conceção do especialista, a ação filantrópica remete para atividades de apoio a grupos “particularmente vulneráveis” na sociedade, por decisão individual ou de pequenas associações, como uma opção de redistribuição de recursos.

A amplitude do conceito gera, consoante às referências encontradas, uma discordância em relação à qualificação do voluntariado enquanto modalidade filantrópica. Para o sociólogo, o investimento monetário sistemático e regular de uma pessoa ou coletivo é essencial para a definição, razão pela qual considera que a filantropia está a desaparecer. “Quem pode fazer isso, que são algumas grandes empresas, na verdade, desenvolve aquilo a que eu chamo ações de responsabilidade social”, explica, garantindo que se trata de uma diferença limitada à designação.

Quem são os filantropos portugueses?

O artigo «Philantropy in Portugal», publicado em 2007, no qual investigadoras da Associação Viver a Ciência avaliam o contexto nacional do investimento privado na área da Pesquisa e Desenvolvimento (P&D), constata que “muitas sociedades europeias não têm uma estrutura filantrópica bem estabelecida”. “Isso contrasta com os Estados Unidos da América e o Canadá, que têm fortes tradições filantrópicas, incluindo instituições especializadas para promover a arrecadação de fundos”, lê-se no estudo.

As autoras definem o Reino Unido com a maior força da filantropia científica da Europa e destacam notáveis avanços do cenário irlandês no mesmo âmbito, com 387 milhões de euros arrecadados para a P&D em 2005. Em contraste, os dados portugueses para o período homólogo somam apenas 17 milhões de euros. “Apesar de ambos serem países pequenos e predominantemente católicos na periferia geográfica da União Europeia, as suas abordagens à filantropia para a ciência têm sido bastante diferentes”, justifica a pesquisa.

As divergências são encontradas através de uma perspetiva histórica, na longa tradição filantrópica em diversos setores da Irlanda – como, por exemplo, a atuação da rede global The Ireland Funds, presente em 12 países, desde 1976 – e o seu período “Tigre Celta”, entre 1995 e 2000, de forte crescimento económico, que gerou um aumento significativo de riqueza. Portugal, por outro lado, além de nunca ter passado por uma fase similar, possui, segundo o estudo, uma economia “superada pela maioria dos outros países da União Europeia” e tem poucas referências, com exceção da Fundação Calouste Gulbenkian, de instituições beneficentes dedicadas à captação de recursos para a ciência.

Muitas vezes são os pais que vão pagando os colégios dos filhos ou ajudam a pagar a prestação da casa para continuar a garantir uma qualidade de vida mínima na família. Exatamente por isso, num país que não tem muitos recursos, não há tanta capacidade para doar de uma forma mais objetiva ou não tão próxima.

Luís Jerónimo

Dezasseis anos depois desta análise, Luís Jerónimo, diretor do Programa Gulbenkian Desenvolvimento Sustentável, confirma, ao Gerador, que o contexto português segue atrás da expressão de outros países anglo-saxónicos. Todavia, acredita que o movimento filantrópico global está em “grande transformação”. Refere-se ao aumento no número de fundações: são 260 mil em todo o mundo, conforme um relatório de 2018 da Universidade de Harvard, das quais cerca de 75 % foram criadas há menos de 25 anos e 44 % nasceram já no século XXI. “Isso também se tem refletido no nosso país. Se olharmos para os últimos 15 anos, para além, obviamente, de fundações mais históricas, como a Fundação Calouste Gulbenkian, vemos o que acontece noutros países a acontecer aqui, à nossa escala”, afirma, ao citar o trabalho desenvolvido pela Fundação Champalimaud, Fundação Francisco Manuel dos Santos e o caso mais recente da Fundação José Neves.

Relativamente à existência de contribuições individuais, Jerónimo reconhece que “a [taxa de] doação individual de cada português, comparada com outros países, é muito baixa”, e arrisca a dizer que os fracos indicadores se devem à cultura de solidariedade familiar do país. “Muitas vezes são os pais que vão pagando os colégios dos filhos ou ajudam a pagar a prestação da casa para continuar a garantir uma qualidade de vida mínima na família. Exatamente por isso, num país que não tem muitos recursos, não há tanta capacidade para doar de uma forma mais objetiva ou não tão próxima”, aponta.

Também membro do conselho consultivo da European Venture Philanthropy Association e administrador não executivo da MAZE, start-up dedicada ao investimento de impacto criada pela fundação que integra, o representante da Calouste Gulbenkian explica que a organização ainda não gere donativos individuais de forma “tão concertada e organizada”, mas menciona casos de bolseiros que, mais à frente na carreira, decidem retribuir o valor neles investido – um impulso, acredita, para a cultura filantrópica.

A responsabilidade social das grandes corporações

O desenvolvimento das fundações também chama a atenção do professor Luís Capucha, confiante no facto de o atual cenário nacional não estar, afinal, “muito distante do resto do mundo ocidental”. A semelhança da realidade anglo-saxónica, “há uma série de instituições [portuguesas]”, expõe o sociólogo, “também constituídas a partir de recursos de grandes empresas e empresários […], que decidem alocar uma parte desses recursos a ações socialmente úteis, de apoio direto aos pobres ou ao desenvolvimento do país. É difícil distinguir a fronteira entre a filantropia e a responsabilidade social das empresas, que, muitas vezes, se exerce através dessas fundações.”

Já em comparação com o caso específico dos Estados Unidos, Capucha sublinha uma diferença, uma vez que, na tradição americana, a responsabilidade social “restringe-se apenas àquilo que as empresas fazem para o exterior”. Segundo o investigador do ISCTE, a ideia de responsabilidade social, tal como é geralmente vista na Europa, implica que as empresas também tenham programas que vão além da lei em termos de regalias sociais para os trabalhadores, como possibilidades de progressão de carreira e formação profissional. “Há, naturalmente, empresas que podem fazer muitas coisas em termos da defesa de causas ambientais, sociais, políticas, científicas, etc., mas, internamente, tratam pessimamente os seus trabalhadores”, reflete.

Admitindo que a responsabilidade social das empresas é uma das modalidades de filantropia, Luís Jerónimo evidencia o papel catalisador das fundações, fortalecido pela independência e capacidade de assumir riscos, de “construir pontes, ser mediador e construtor de diálogo e testar e validar soluções em diferentes áreas, melhor informando a política pública e convocando outro tipo de recursos para escalar essas soluções”. Em nome da Fundação Calouste Gulbenkian, assegura uma preocupação do movimento filantrópico com a avaliação do seu impacto através da monitorização das atividades propostas, que partem de “problemas negligenciados”, a exemplo de falhas de mercado ou de governo.

Há, naturalmente, empresas que podem fazer muitas coisas em termos da defesa de causas ambientais, sociais, políticas, científicas, etc., mas, internamente, tratam pessimamente os seus trabalhadores.

Luís Capucha

Porque os problemas a resolver são cada vez mais complexos, continua o especialista, a chave para o desenvolvimento da filantropia está na colaboração entre as entidades que a representam. “A necessidade de recursos financeiros e não financeiros também é crescente e, isoladamente, muito difícil [de ultrapassar] para qualquer uma das fundações, por mais recursos que tenha”, lamenta.

Contrariamente ao sociólogo, Jerónimo julga que os recursos monetários não são a única opção para fazer a diferença na vida das pessoas. Do seu ponto de vista, é necessário desinstitucionalizar o exercício filantrópico e considerar as doações de tempo envolvidas em compromissos de voluntariado como uma modalidade igualmente válida. “Nem tudo que possa ser apoio filantrópico tem de, necessariamente, se transformar em liquidez, em cash flow. Na verdade, todos podemos desempenhar um papel nesta matéria”, estabelece.

Não há desacordos, porém, no que toca à responsabilidade do Estado. “O facto de existir filantropia ou responsabilidade social por parte das grandes empresas não dispensa ao Estado de fazer o seu papel de redistribuidor da riqueza. Isso sim pode mudar o mundo”, conclui Capucha.

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