Em “Le droit de choisir ses fréres?” [O direito a escolher os seus irmãos?], livro publicado no início de 2023, o pensador francês Alexandre de Vitry traça a história da ideia de fraternidade. Com foco em França, onde o termo é omnipresente como parte do lema republicano ao qual se associa à liberdade e à igualdade, o autor expõe a complexidade do conceito, dos tempos pré-cristãos até aos dias de hoje. Detalhando as suas diferentes conceções, tais como irmandade de sangue, de criação, de grupo ou de experiência, de Vitry assinala que a própria ideia de fraternidade foi evoluindo ao longo do tempo e das alterações políticas e sociais, sendo muitas vezes um ideal que não teve tradução em leis concretas. A fraternidade – entendida lato sensu e incluindo a sororidade – é, portanto, um conceito em permanente construção e concretização.
Eminentemente moral antes de figura legal, a fraternidade é um conceito agregador: se todos somos irmãos e irmãs, então todos pertencemos à mesma família, seja ela de sangue, ideológica ou outra. Mas, como nota de Vitry, a fraternidade pode também fazer-se por exclusão. Purgando-se aqueles que não aderem à visão definida de pertença à comunidade, dão-se dois fenómenos em paralelo. Por um lado, aprofunda-se a fraternidade dos que se identificam com essa visão dominante de pertença (e, não raramente, uma visão cada vez mais estrita e excludente); por outro, aqueles que não aderem a essa visão dominante, seja por vontade própria, seja porque as (novas) regras e leis definidas assim o provocam, são “desfraternizados”, sendo assim identificados como não-irmãos e, por arrasto, não-dignos da casa comunitária, seja esta a cidade, o país ou o continentes.
É neste constante conflito entre pertença e não-pertença que o conceito de fraternidade vai evoluindo. No presente, é a visão excludente da ideia de fraternidade que tem vindo a ganhar força. Dois casos nas últimas semanas servem de exemplo. O primeiro, diz respeito à nova lei da imigração aprovada na Assembleia Nacional francesa, com votos da direita, extrema-direita e de uma boa parte do bloco macronista. Entre outras coisas, esta lei que a extrema-direita vê como uma “vitória ideológica”, limita as possibilidades de reunião familiar para imigrantes e exclui os imigrantes sem papéis do acesso a abrigos de emergência, promovendo uma diferença de facto entre nacionais e alguns estrangeiros “desfraternizados”.
O segundo é o anunciado acordo para um “Novo Pacto de Migração e Asilo” a nível europeu, cuja aprovação ainda deve passar pelo Parlamento Europeu. Entre muitas outras coisas, este acordo reforçaria os mecanismos de vigilância e punição, em lugar de propor políticas que sirvam efetivamente para que o continente europeu deixe de promover verdadeiros cemitérios às suas portas.
Também em Portugal, no próximo dia 10 de março, se confrontarão diferentes visões de fraternidade. De um lado, aqueles que querem alargar a pertença à comunidade, reforçando os laços entre todos aqueles com quem partilhamos o país, criando para isso as condições legais para que essa pertença seja efetiva e igualitária; do outro, aqueles que definirão a comunidade pela “desfraternização” e pela exclusão.
E é este o nosso grande desafio que temos pela frente: o de construir uma comunidade na qual todas e todos caibam. Saibamos pois criar uma ideia e prática de fraternidade da qual as próximas gerações se possam orgulhar.
-Sobre Jorge Pinto-
Jorge Pinto é formado em Engenharia do Ambiente (FEUP, 2010) e doutor em Filosofia Social e Política (Universidade do Minho, 2020). A nível académico, é o autor do livro A Liberdade dos Futuros - Ecorrepublicanismo para o século XXI (Tinta da China, 2021) e co-autor do livro Rendimento Básico Incondicional: Uma Defesa da Liberdade (Edições 70, 2019; vencedor do Prémio Ensaio de Filosofia 2019 da Sociedade Portuguesa de Filosofia). É co-autor das bandas desenhadas Amadeo (Saída de Emergência, 2018; Plano Nacional de Leitura), Liberdade Incondicional 2049 (Green European Journal, 2019) e Tempo (no prelo). Escreveu ainda o livro Tamem digo (Officina Noctua, 2022). Em 2014, foi um dos co-fundadores do partido LIVRE.