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Frenesim de compras pede “huevos rotos”

Ilustração de André Carrilho

No dia da Imaculada Conceição costuma dar-se tradicionalmente o “pontapé de saída” para as festividades natalícias. 

O nascimento imaculado da Virgem Maria foi declarado dogma no Concílio de Trento (1545-1563) onde pontificou (sendo arcebispo apenas) o grande D. Frei Bartolomeu dos Mártires, pai dos pobres, a pessoa mais feia por fora e mais bela por dentro do seu tempo. Se querem saber detalhes desta aventura do santo arcebispo de Braga por terras da Europa a caminho de Trento, incógnito, montado numa mula e apenas com um criado ao lado, leiam o livro homónimo de Aquilino Ribeiro e vão rir-se com gosto.

Este dia 8 de dezembro na maioria dos países católicos é feriado, e por inerência aproveita-se a oportunidade para ir fazer compras de Natal. Em Espanha penso que será um dos locais onde esta tradição tinha (ou ainda tem) mais força.

Em Madrid era uma festa popular onde as famílias “tapeavam” por entre as entradas e saídas das lojas com os presentes às costas. A partir de certa altura os maridos refugiavam-se nalgum bar ou “bodega” e deixavam as comadres à solta no Bairro de Salamanca (para quem tinha bolsos fundos) ou na Puerta del Sol perto dos Preciados (para os outros).

Da última vez que – antes das crises – por ali estive nesta data, ou em redor dela, o que mais me impressionou foi o frenesim que se detetava ao nível da restauração, mas também nos mais conhecidos "templos do consumo", a começar pelas lojas do El Corte Inglês.

Numa dessas jornadas em Madrid fiz questão de experimentar a antiga Casa Lucio (Calle de la Cava Baja), que fez a reputação em torno de um prato “da noite”, os "huevos rotos", que são umas simples batatas fritas em cima das quais se "entornam" ovos estrelados. E que pode ser servido com bocadinhos de presunto, paio, pimentos,  etc...

As horas de comer em Madrid são iguais às nossas… mais duas. Parece um fuso horário. Se alguém entrava num restaurante antes das 14h para almoçar, ou antes das 21h para jantar, diziam logo “Aquí viene un portugués”.

Sabedor disto e como já me doíam os pés das excursões das compras, cheguei mais cedo à espera de encontrar a Casa Lucio relativamente vazia. 

Engano. 

A fila à porta era já significativa e composta por desvairadas gentes de muitas nacionalidades.  Madrilenos não me apercebi que lá estivessem.

Fui para o hotel sem comer, sentei-me na sala de jantar e pedi se me faziam uns ovos daqueles, como os do Lucio. Riram-se muito e foi ali que aprendi a história do início do mito.

Aparentemente teve de se inventar que fora a Avó do Lucio a criar a "receita" num dia de azar em que deixou cair ao chão da cozinha  a frigideira dos ovos fritos... Tornou a levantar tudo do mesmo chão (!), espetou-lhes as batatas mal fritas por cima (por causa da pressa) e… Já estava inventado o famoso prato, delícia de reis (isso é verdade, o atual vai lá algumas vezes) financeiros, pobres, ricos e remediados.

Mal ou bem, e passe o exagero do preço a que o Lucio hoje serve este seu prato emblemático, o certo é que dá um certo jeito saber fazê-lo e sobretudo comê-lo naquelas noites em que se chega a casa tarde demais para ir prestar serviço ao fogão.

Comida de conforto, aconchego do estômago em dias pobres, comida de preguiçosos, ou até manjar da estudantada quando estes ainda viviam nas Repúblicas, “huevos rotos” pode ser e será tudo isso.

Mas tomem lá a receitazinha, não vá aparecer lá por casa, já noite noitinha, alguma visita menos avisada.

Há duas versões, a dos “Huevos Revueltos” e a dos “Huevos Rotos” propriamente ditos. Na primeira os ovos são mexidos. Na segunda são mal fritos (estrelados). Mas sempre em azeite.

Batam-se 6 ovos grandes numa tigela com sal e pimenta preta. Se forem tirados do frio passem-nos pela torneira da água quente antes de os partirem. 

Haja o cuidado de dar bastos golpes de garfo nas gemas, para ficarem cremosos. E podem deitar um pouco de leite gordo para ainda mais amaciarem a mistura. Depois fritam-se em azeite, previamente aquecido na frigideira funda.

No caso de usarem a versão dos ovos estrelados, fritem-nos simplesmente com o mesmo tempero de sal e pimenta preta, em bom azeite

À parte cortem batatas em palitos grossos, lavem bem em várias águas, e fritem-nas sem deixar "estrelicar".

Partam em miúdo presunto ou paio, juntem se tiverem pimentos verdes crus, ou até bocadinhos de tomate meio maduro, bem limpo. Podem complicar se quiserem com cebola picadinha e alho, também ele finamente picado. Há quem lhe meta malaguetas, e há também quem complete isto tudo (mixórdia vem à ideia) com cogumelos aos pedaços...E pão apenas aquecido, ou mal  torrado em pedaços, para ensopar.

Finalmente, deitem tudo na mesma travessa, mais funda do que rasa: primeiro as batatas, depois o picadillo de presunto, pimentos , etc... por cima disto tudo os ovos mexidos ou os mal estrelados, consoante a versão que utilizarem.

Uma coisa é certa: em estando a travessazinha na mesa abram um tinto adequado - porque não um vigoroso Douro novo, da “Sobredos”, perto de Lamego? Chama-se Aneto e é um ótimo vinho para estas exéquias.

Depois preparem-se para a conversa, pois este prato será daqueles que mais puxa pela língua em noites frias à espera do Pai-Natal.

Boa Noite!

-Sobre Manuel Luar-

Manuel Luar é o pseudónimo de alguém que nasceu em Lisboa, a 31 de agosto de 1955, tendo concluído a Licenciatura em Organização e Gestão de Empresas, no ISCTE, em 1976. Foi Professor Auxiliar Convidado do ISCTE em Métodos Quantitativos de Gestão, entre 1977 e 2006. Colaborou em Mestrados, Pós-Graduações e Programas de Doutoramento no ISCTE e no IST. É diretor de Edições (livros) e de Emissões (selos) dos CTT, desde 1991, administrador executivo da Fundação Portuguesa das Comunicações em representação do Instituidor CTT e foi Chairman da Associação Mundial para o Desenvolvimento da Filatelia (ONU) desde 2006 e até 2012. A gastronomia e cozinha tradicional portuguesa são um dos seus interesses. Editou centenas de selos postais sobre a Gastronomia de Portugal e ainda 11 livros bilingues escritos pelos maiores especialistas nesses assuntos. São mais de 2000 páginas e de 57 000 volumes vendidos, onde se divulgou por todo o mundo a arte da Gastronomia Portuguesa. Publica crónicas de crítica gastronómica e comentários relativos a estes temas no Gerador. Fez parte do corpo de júri da AHRESP – Associação de Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal – para selecionar os Prémios do Ano e colabora ativamente com a Federação das Confrarias Gastronómicas de Portugal para a organização do Dia Nacional da Gastronomia Portuguesa, desde a sua criação. É Comendador da Ordem de Mérito da República Italiana.

Texto de Manuel Luar
A opinião expressa pelos cronistas é apenas da sua própria responsabilidade.

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