Nas suas alegações iniciais no Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) a 11 de janeiro de 2024, Adila Hassim, representante da República da África do Sul, lançou o mote daquele que seria o início de um processo emblemático no maior palco de litigância internacional, afirmando, sobre os ataques do Estado de Israel contra o povo palestino na Faixa de Gaza: “Este assassinato em massa é nada menos do que a destruição da vida palestina. É infligido deliberadamente. Ninguém é poupado – nem mesmo bebés recém-nascidos.”1
Foi no final de 2023 que a República da África do Sul deu entrada a uma petição no TIJ contra o Estado de Israel por violações à Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio de 1948 (a versão original da petição da tem 84 páginas, e está disponível online, em inglês).
À data da petição2:
23,210 pessoas palestinas assassinadas pelas forças israelitas desde 7 de Outubro, 70% das quais crianças e mulheres.
7,000 pessoas desaparecidas, presumidas mortas sob os escombros.
‘Genocídio’. Em momentos assim as palavras são permeáveis, a urgência verte e perde a definição. Mas valem-nos aproximações. Tentar prender a urgência. Moldá-la, atribuir-lhe volume e peso. Não há aproximação mais adequada que ‘genocídio’. Não é por acaso que a usamos, tal como não é por acaso que tenha sido a República da África do Sul a pronunciar-se pública e inequivocamente contra um regime de apartheid e ocupação ilegal; tal como não é por acaso que seja o Sul Global a ter a bravura e a dignidade de se aliar ao coro sul-africano que exige inequivocamente que a comunidade internacional responsabilize o Estado de Israel pelo seu papel mortífero e unilateral na criação de um estado de vulnerabilidade perpétua em que vive o povo palestino; um contínuo de agressão e desumanização; um terror simultaneamente inimaginável e inescapável para milhões de pessoas forçadas a negociar a sua sobrevivência, pessoas para quem a paz é uma aspiração distante, como o silêncio, ou o alívio.
Sobretudo, não é por acaso que tudo isto sabemos; mas sim porque centenas de jornalistas palestinos arriscam diariamente o seu corpo e a sua humanidade para reportar a sua própria aniquilação e a dos seus familiares, a devastação da sua terra, a ruína da sua subsistência. O primeiro genocídio televisionado em direto. Súplicas por misericórdia em formato visual, nas nossas mãos e bolsos. É por existir quem, heroicamente, escreva a brutalidade, desdobre as histórias, reconduza a violência indescritível a um conceito para o fixar na nossa consciência coletiva, ou para não permitir que esqueçamos que existe e sob que forma, que tem autor e cúmplices, que passa impune e é abafada. É por existir quem escreva a brutalidade, reporte as atrocidades, transmita, sem interrupção, o terror, para lembrar ou não deixar esquecer que há lugares no mundo onde existe algo muito mais aterrorizador que a morte: a vida.
‘Genocídio’ nada esgota, mas preenche. 84 páginas não contam toda a história: são décadas. Mas a coragem de quem expõe ao mundo as atrocidades recorrentes cometidas pelo Estado de Israel ao povo palestino desde 1948, e de quem relata com clarividência a destruição da sua existência ao mesmo tempo que a procura preservar não é, de todo, banal. Resta-nos cumprir a nossa parte. Escrever também sobre o que sofre o povo palestino, dar eco às vozes da ocupação que pouca cobertura mediática conseguem assegurar, boicotar quem financia a aniquilação, educar quem nos rodeia, ocupar as ruas. Não esquecer, e assumir responsabilidade. Interiorizar que não há como não ver sem ativamente desviar o olhar. Toda a ignorância é culposa, e para esfregarmos a vergonha do nosso silêncio precisaríamos de mais tempo do que alguma vez teríamos, em vida, talvez depois, talvez para sempre.
-Sobre Miriam Sabjaly-
Miriam Sabjaly é jurista. Trabalhou como técnica de apoio a pessoas migrantes vítimas de crime em Portugal e a pessoas vítimas de crimes específicos, como os crimes de ódio, tráfico de seres humanos, discriminação, mutilação genital feminina e casamento forçado. Foi assessora da Deputada não inscrita Joacine Katar Moreira entre março de 2021 e março de 2022. Atualmente é mestranda em Direitos Humanos, dividindo o tempo entre Gotemburgo (Suécia), Bilbao (Espanha), Londres (Reino Unido) e Tromsø (Noruega).
Texto de Miriam Sabjaly
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- Tradução livre das declarações de Adila Hassim frente ao Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) a 11 de janeiro de 2024. A transcrição direta da audiência, em inglês, pode ser acedida aqui. ↩︎
- Dados citados pela República da África do Sul nas suas alegações iniciais, decorrentes dos breves relatórios do Gabinete para a Coordenação dos Assuntos Humanitários da ONU de 9, 6 e 3 janeiro (podem ser acedidos aqui). ↩︎