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Homens e feras

Agora, anda por aí o silêncio.Não aquele que se ouve, amadamente, perto da respiração.É antes…

Opinião de Jorge Barreto Xavier

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Agora, anda por aí o silêncio.
Não aquele que se ouve, amadamente, perto da respiração.
É antes um silêncio calado.
De vez em quando, uma sirene.
Uma abstinência forçada paira sobre as ruas, as casas, os lugares.
Li que raposas e lobos começam a povoar as ruas de algumas cidades e os golfinhos, até as baleias, aproximam-se das enseadas. Pássaros multicolores chegam aos beirais. Libélulas e abelhas cirandam as flores.

O poder tem horror ao vazio.
O que não podem os homens, podem os cetáceos, os animais terrestres, as aves, os insectos.
Nós, povoando o interior das paredes. Eles, ocupando os espaços exteriores.
Outrora, faz milhões de anos, sem seres humanos dominantes, eles já por aí.
Nós, agora, lutando contra um horror invisível.
Eles, percebendo a nossa deserção.
Nós, encarcerados, eles, livres.
É a reparação irónica por tantos jardins zoológicos espalhados na face da Terra.
Estamos, agora, no sítio circunscrito das feras, um jardim zoológico humano, olhando o mundo pelas fendas das janelas. E elas, calcorreando mares e rios, veredas e estradas, podem visitar-nos - e não só aos fins de semana - nas nossas atuais jaulas.

Sitiados, estamos numa luta desigual. Venceremos, sim, mais tarde ou mais cedo, essa é a sina do homem sobre a Natureza, não importa o preço.
Quantas perdas até lá? Quem nos deixa, quem fica sem o sustento, quem sofre a doença e a solidão, quem passa fome ou sofre violência.
Já conhecíamos estes males. Agora, ampliou-se o seu significado, pois toca-nos, diretamente.

Mudar de vida.
Por vezes pensamos mudar de vida. E mesmo quando o não fazemos, temos perto das decisões que tomamos e do andar dos dias essa porta aberta, ou aparentemente aberta. A ideia alimenta-nos ao longo da adolescência, da juventude, da vida adulta, mesmo na velhice.
Agora, mudámos de vida. Por obrigação.
Não é a liberdade que fala.
E esta mudança também não é mercantil. Quer dizer, não é uma troca de bens, intermediada por um preço. Não corresponde a uma escolha livre, entre múltiplas possibilidades. Não estamos a trocar bens. Estamos a proteger bens contra males. Não escolhemos este campo de trocas, o que aqui se cambia não tem preço, não há como estabelecer uma escala monetária para a perda de valores irreparáveis - a vida, a dignidade, por vezes, a esperança.

Lembro coisas que não faço sempre.
Mas saber que são possíveis é parte de mim.
Subir a avenida, entrar no jardim, reparar nas diferentes árvores, nos velhos sentados ao sol,  nas crianças no escorrega, com a chilreada do costume, sentar-me na esplanada a detestar os patos no pequeno lago.
Tomar um cacau quente e ler o jornal, enquanto olho, distraído, quem passa.
Calcorrear pela noite as ruas, depois de um copo com os amigos.
Almoçar à beira-rio, com o rumorejar do Tejo.

Estar perto dos que amo. Partilhar a mesa quotidiana, o pão de cada dia.
Parece, agora, uma miragem numa superfície opaca que dobra o tempo e o espaço.

E há nesta era génios em garrafas. Somos todos espíritos diminuídos e perturbados dentro de pequenos recipientes.
À noite, apesar das estrelas continuarem a arder no céu, o breu parece ter-se carregado.

Tudo se passa dentro, claro. Já não dentro das casas, mas dos corações.
Face a tão súbita tormenta, duvida-se do rumo da navegação.
O horizonte turva-se.

Será que estamos condenados a empurrar uma pedra até ao cimo da montanha e nunca conseguir atingir o seu cume?

Retiro o peso autoimposto da rolha da garrafa.
É imperioso libertar o génio em nós.
Afinal, tanto as planícies como as montanhas são só parte de uma geografia maior.
O ponto de partida é um músculo interior.
A ideia do peso da subida impossível é absurda.

Navegar é preciso. Viver é preciso. O nosso sopro pode enfunar as velas levando o precioso esteio dos sonhos, das criações novas que engendramos e que nos engendram.

Conceber o resplendor da aurora traz a saudade de um futuro de que somos os construtores imprescindíveis.
Somos, seremos, ferozmente, quem escolhermos ser.
Há novas catedrais a elevar.

-Sobre Jorge Barreto Xavier-

Nasceu em Goa, Índia. Formação em Direito, Gestão das Artes, Ciência Política e Política Públicas. É professor convidado do ISCTE-IUL e diretor municipal de desenvolvimento social, educação e cultura da Câmara Municipal de Oeiras. Foi secretário de Estado da Cultura, diretor-geral das Artes, vereador da Cultura, coordenador da comissão interministerial Educação-Cultura, diretor da bienal de jovens criadores da Europa e do Mediterrâneo. Foi fundador do Clube Português de Artes e Ideias, do Lugar Comum – centro de experimentação artística, da bienal de jovens criadores dos países lusófonos, da MARE, rede de centros culturais do Mediterrâneo. Foi perito da agência europeia de Educação, Audiovisual e Cultura, consultor da Reitoria da Universidade de Lisboa, do Centro Cultural de Belém, da Fundação Calouste Gulbenkian, do ACIDI, da Casa Pia de Lisboa, do Intelligence on Culture, de Copenhaga, Capital Europeia da Cultura. Foi diretor e membro de diversas redes europeias e nacionais na área da Educação e da Cultura. Tem diversos livros e capítulos de livros publicados.

Texto e fotografia de Jorge Barreto Xavier

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