É uma questão de gosto, dizem: bom para uns, mau para outros. O que não pode ser mesmo, acrescentam, é uma questão de Justiça.
Seja porque a liberdade artística não deve ser restringida pelos tribunais, seja porque qualquer tentativa nesse sentido abre um perigoso precedente contra outras liberdades – e depois vai ser um fartar ‘facharia’.
Mas, o que dizer da protecção do direito à honra, ao bom nome, e à dignidade humana? Vale tudo em nome do riso?
É assim que, entre apreciações e depreciações do que o humor pode e não e não pode, vamos acompanhando um já longo e inesperado duelo entre a dupla musical Anjos e Joana Marques.
Para quem tem andado distraído, aqui vai um brevíssimo resumo: a humorista, tão amada quanto odiada pelo podcast da Renascença “Extremamente Desagradável”, agarrou num vídeo de uma interpretação desastrosa do hino nacional pelos Anjos, e gozou com cada nota de desafinação, a partir da sua conta no Instagram. A sátira incluiu uma montagem dessa actuação com imagens do júri do programa de talentos “Ídolos”, ao qual a humorista pertenceu, e do qual seleccionou uma série de esgares.
No final, ouve-se o artista Tatanka, um dos jurados, sentenciar: “Depois entraste ali num campo ‘muita’ delicado, que é assassinar uma música destas, e eu tive de mandar parar”.
Três anos depois da publicação, em 2022, a humorista está a ser julgada por danos morais e patrimoniais pelos Anjos, que reclamam 1,118 milhões de euros de indemnização.
O caso tem suscitado acaloradas discussões, que abrevio no confronto de ideias apresentadas no arranque do texto.
De um lado há quem defenda que o julgamento do humor é o riso, e que qualquer tentativa de o escrutinar em tribunal representa um ataque às nossas liberdades e à Democracia. Do outro lado, inverte-se a leitura, alegando-se que a robustez democrática assenta, entre outros edifícios, no reconhecimento de que não há direitos absolutos.
No final dia, podemos resumir tudo a uma única questão: “Há limites para o humor?”.
Defendo que sim, porque entendo que a liberdade de fazer rir não pode ser carta branca para agredir.
Da mesma forma que digo “não, não pode” a um político que achincalha pessoas, também digo “não, não pode”, a um humorista que, usando da mesma bitola usa o palco de que dispõe para estereotipar e desumanizar, reforçando preconceitos e estigmas que ferem, excluem e normalizam territórios de violência.
Sei que a comparação pode soar absurda e excessiva, mas, cada qual na sua arena, não cabe a todas as pessoas cuidar do espaço público? Como exercer cidadania sem civismo? O que nos leva a relativizar destilarias de ódios, ao abrigo de uma qualquer expressão artística?
Será que temos tanta fé no bom discernimento individual e colectivo que acreditamos que tudo é dizível e defensável sem dano?
Talvez seja útil lembrar como é que esse discernimento se tem expressão: está em alta nas urnas, na adesão a fake news, em correntes e mais correntes negacionistas, em perfis e comentários de ódio nas redes sociais, nos níveis assustadores de bullying.
Não, não estou a responsabilizar os humoristas por este estado da arte, estou simplesmente a discordar da ideia de inofensividade do humor, associada à sua defesa universal e absoluta.
Tão-somente porque não acredito que piadas que reduzem mulheres a nacos de carne sexual, patologizam pessoas trans ou criminalizam pessoas negras não tenham qualquer efeito no modo como estes grupos são tratados.
Quero com isto dizer que há comunidades que devem estar ‘isentas’ de tiradas de humor?
De todo. O que defendo é que ninguém tem o direito de humilhar e instigar ódios, e que quem opta por o fazer tem de ser responsabilizado, seja ou não humorista.
Aqui chegados, defendo também, a partir do tanto que já se escreveu e disse sobre o processo Anjos vs Joana Marques, que, nesta situação, o único limite ultrapassado foi mesmo o da desafinação.
Pelo contrário, encontro no caso do brasileiro Léo Lins – embora não na extensão da pena –, tudo o que me leva a defender a existência de limites no humor: a transformação de piadas em discurso de ódio, a incitação ostensiva de preconceitos, e a contaminação dos palcos e das redes sociais para humilhar e ofender. A quem é que isto tudo dá vontade de rir?