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João Cristóvão Leitão: “A nossa memória é muito falaciosa”

Ao sonhar com um encontro impossível entre si e o seu avô materno, João Cristóvão…

Texto de Sofia Craveiro

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Ao sonhar com um encontro impossível entre si e o seu avô materno, João Cristóvão Leitão quis explorar os meandros da memória, da recordação e de como ambos se cruzam para construir uma realidade que apenas existe no campo da fantasia. A partir de imagens e vídeos recolhidos do próprio arquivo familiar, o artista visual propôs-se a explorar esta ideia de relação melancólica que nunca pôde existir senão no seu intelecto. “Foi o sonho que me levou até as imagens e as imagens a todo o pensamento”, diz ao Gerador.

O paradoxo desta busca incessante pelo inalcançável, resultou na sua mais recente videoinstalação intitulada em busca de Averróis. O nome evoca a obra do escritor argentino Jorge Luis Borges que, no seu conto A Busca de Averróis (1947) narra a perplexidade sentida por Averróis, estudioso árabe muçulmano, ao deparar-se com a dificuldade em traduzir as palavras tragédia e comédia, contidas na obra do filósofo Aristóteles. “Se Averróis procura traduzir um homem de quem o separam 14 séculos, João procura traduzir um homem de quem o separam umas quantas décadas. Se Averróis procura recuperar o significado de termos que remetem para práticas artísticas miméticas que eram, à data, estranhas ao mundo muçulmano, João procura recuperar aquilo que as imagens para as quais olha não têm como revelar”, lê-se na nota de imprensa enviada ao Gerador.

A exposição é inaugurada no próximo dia 28 de setembro, às 16 horas, na Galeria Appleton, em Lisboa. Estará patente até 2 de outubro e a entrada é livre.


Gerador (G.) – Estamos aqui para falar da tua nova instalação intitulada "em busca de Averróis", que foi criada a partir de um encontro com objetos do teu arquivo de família... Como se deu esse encontro?

João Cristóvão Leitão (J.C.L.) - Na verdade acho que há dois pontos de partida para o projeto. Um deles é uma investigação que eu tenho vindo a fazer, desde há alguns anos para cá, em torno do universo literário e filosófico do autor argentino Jorge Luis Borges. E, em segundo lugar, foi um sonho - que eu acho que o teaser tem esse excerto também - que é sempre narrado em voz-off. Eu começo o teaser e a própria instalação, a dizer que, realmente, me recordo daquilo que sonho. Nesse sonho, houve um encontro entre mim e esta pessoa, que é o meu avô materno que, enfim, morreu quando [eu] teria cerca de 10 anos. Ou seja, foi este sonho - já dentro deste universo um bocado onírico - que motivou a procura de fotografias e de tentar conhecê-lo um bocadinho melhor. Foi o sonho que me levou até às imagens e as imagens a todo o pensamento que depois fui fazendo. [Fez-se] o link entre estas três coisas, que é o sonho, a figura do avô, o arquivo de família e o próprio texto do Borges. E este meu encontro, com estas imagens foi muito interessante, porque foi uma coisa que foi sendo... funciona um bocadinho como cumulação. O filme todo, a instalação, passa-se dentro de uma sala, que é uma sala da casa de meu avô, numa aldeia na Beira Baixa e que é uma casa de família, para todos os efeitos.

Portanto, eu sabia que muitas fotografias da vida dele e da minha avó estavam por lá, em várias gavetas. Este foi o primeiro material com o qual eu contactei. Entretanto, fui falando sobre este projeto com a minha própria família mais direta, e, de repente, começaram a surgir outras imagens, que passaram do registo fotográfico para o registo fílmico, no sentido em que, tanto os meus tios, como o meu pai e a minha mãe de repente relembraram-me - que já não me lembrava - de que há muitas imagens VHS da minha infância e das minhas primas (que têm mais ou menos a mesma idade do que eu). De repente, não estava só a trabalhar com o arquivo fotográfico da minha família, mas também com o arquivo de imagem em movimento, que tinha uma quantidade absurda de horas. Devo ter [na minha posse] cerca de 25 horas de filme... se bem que o meu avô só aparece, para aí, entre meia hora a 40 minutos.

Portanto, mesmo o trabalho que eu fiz nessas imagens, foi também um trabalho de procura, de perceber onde que ele está, porque ele raramente aparece. Isto numa segunda fase. Numa terceira fase ainda, em que estava também a revirar todas as gavetas e depois a adega e o armazém que aquela casa tem, eu dou com uma câmara Super 8 com película, que, em teoria, seria do meu avô (depois não é exatamente assim, mas estava ao pé das coisas dele). De repente, este material todo vai sendo incluído no próprio filme e altera-o, altera a maneira como ele vai sendo construído.

G. – Com todos estes materiais exploras a relação com o teu avô, que é descrita como tendo falta de afinidade (ou pelo menos uma falta de lembrança dessa afinidade, já que ele faleceu quando ainda eras muito jovem). O que te levou a explorar essa contradição? Ou seja, explorar a memória de uma relação da qual não tens muita lembrança ou não te recordas de como ela existiu?

J.C.L.- Vou regressar ao sonho. Esta dimensão processual é refletida depois também no próprio projeto, e eu referi no projeto que nesse sonho - que foi um sonho que foi quase uma imagem só, em que nada acontecia - eu fiz uma pergunta qualquer ao meu avô e ele não me respondeu, e isso foi uma das coisas que motivou também o projeto. Eu depois, ao pensar sobre o sonho, descubro que já não me lembro da voz dele. Isso foi uma coisa que, de alguma forma, foi intrigante e criou uma ideia qualquer de impotência em relação a uma pessoa que me era muito próxima e familiar porque, muito embora a nossa coabitação tenha sido pouca, ele sempre foi uma pessoa muito presente na minha família e na minha casa, etc. Isto por um lado. Ou seja, a não lembrança da voz é o motor, também, desta procura.

Depois, também porque, nesse sonho, eu já era adulto e ele manteve a aparência que eu relembro. Portanto, foi assim um sonho que, em termos temporais, foi um bocadinho anacrónico. Aquilo que nunca aconteceu em vida de repente dá-se num sonho...

G. – Essa interação...

J.C.L. Sim. Não havia outro lugar que não sonho para estes dois humanos adultos se poderem encontrar.

Depois [surge] também a questão de, à medida que vais pensando sobre alguém ou alguma coisa que te é longínqua, tu percebes que a tua memória é muito falaciosa e que, às tantas, já não percebes o que é que faz parte da memória, o que faz parte da construção, que foste tu que foste preenchendo lacunas. Eu acho que o projeto é um bocadinho também sobre isso.

G. Há uma certa mistura entre realidade e ficção, no sentido em que a ficção vem da própria memória?

J.C.L. - Sim, sim, e porque o projeto não tem pretensão nenhuma de reconstruir uma biografia desta pessoa. Ou seja, o projeto parte do pressuposto de que essa reconstrução é impossível e, portanto, tudo aquilo que eu possa vir a pensar, dizer ou refletir vai ser sempre um ato de ficção, e parte deste pressuposto. Não tenho pretensão de traçar uma biografia ou o que [quer] que seja. Muito embora parta de um lugar altamente íntimo e de imagens que, de facto, não têm essa dimensão ficcionada, eu é que as ficciono no projeto.

G.- Mas também há aqui um paralelo entre este trabalho e a obra de Borges. De que forma sentiste a necessidade de o fazer?

J.C.L. - Eu, na verdade, trabalho vários textos do Borges nesta instalação, mas há um deles, que é o de partida, no qual o título é inspirado. O título não corresponde exatamente ao nome do texto de Borges. Há uma mudança de uma proposição. Eu já tinha conhecimento deste texto e já tinha lido aquilo e gostei.

O paralelismo que fiz foi porque o texto, muito sucintamente, trata de um filósofo muçulmano no século XII que é uma figura histórica real. Um dos objetivos dele foi comentar a obra filosófica de Aristóteles e ele teve uma grande dificuldade em traduzir dois termos, que foi tragédia e comédia. E, enfim, por diferentes razões, ele traduziu mal, aquilo que ele propôs para a tradução é errado. Isto porquê? Ele não poderia não errar, a questão aqui é essa.

[Não poderia] não errar, por circunstâncias culturais e mesmo religiosas que não permitiam perceber as coisas tal e qual como Aristóteles tinha pensado. Isto tudo é basicamente o framework com que o Borges trabalha, que são factos, de alguma forma, históricos. E o que me interessou na altura, mesmo antes deste projeto existir - e acho que é o interessante do conto, na verdade - é a procura de alguém por alguma coisa que lhe está vedada e que vai ser sempre impossível de encontrar. E eu fiz aqui um paralelo com esta minha tentativa poética e simbólica de tentar recuperar a voz de alguém.

Enfim, também essa procura, à partida, está fadada ao fracasso. Foi um bocadinho esse o paralelo que fiz e a maneira como pus as duas coisas a dialogar. Se bem que, com o desenvolver do projeto, este paralelo começou a desfazer-se. Embora o outcome fosse a mesma coisa, tanto o Averróis como eu próprio errávamos na procura de alguma coisa, mas por razões muito diferentes, e eu acho que este desfazer do paralelo é também refletido, não só enquanto processo artístico, mas na própria narrativa da instalação.

G. - Isto é um pouco uma curiosidade... mas tendo em conta que esta obra é algo que tem um caráter tão pessoal e é baseada em arquivos pessoais, poder-se-á dizer que terá sido influenciada, também, por este tempo e este contexto de pandemia, em que todos nos viramos para o nosso próprio mundo? Ou antes era algo que estava a ser desenvolvido antes disso?

J.C.L. - Eu creio que não, porque o projeto é anterior à pandemia. Muito embora, em termos práticos, ele foi desenvolvido, de facto, durante a pandemia mas a ideia do projeto e a fase toda de pré-produção, etc., foi pré-pandemia, portanto nesse sentido acho que...

G. – Não terá sido por aí...

J.C.L. – Não, acho que não.

G. -De qualquer forma, na tua opinião as expressões artísticas neste campo, em vídeo, terão saído valorizadas deste tempo de distâncias? Foi algo que as pessoas começaram a apreciar de outra forma?

J.C.L. - Não sei. Claramente houve uma necessidade, pelo menos num primeiro momento, de digitalizar um bocado as coisas. Ou seja, a vontade de fazer as coisas acontecer, a possibilidade de estar num palco ou com o público, ou o que seja, fez algumas adaptações nesse sentido. Todavia, não sei se houve um interesse acrescido. Não sei. Acho que isto, de facto, veio revolucionar um bocadinho, mas estou a pensar que, por exemplo, nos festivais de cinema, que aconteceram online - e que, de repente, não havia a questão de nos termos de deslocar aos locais etc. - não sei até que ponto é que eles foram estando mais acessíveis a um público muito mais vasto, no sentido em que, de repente, era possível ver determinados filmes num contexto de festival que acontecia numa determinada cidade e podia ser visto por muito mais gente. Mas - é a minha perceção não sei até que ponto é que houve um interesse acrescido na coisa.

G. - Eu não digo que haja necessariamente mais público, mas terá surgido outra forma de encarar diferentes expressões culturais?

J.C.L. Não sei, talvez. Acho que não tenho uma resposta muito inteligente. [risos]

G. – Tens mais projetos a anunciar? Outras obras que irás dinamizar em breve?

J.C.L. – Quando acabar esta instalação, vou começar com ensaios para o espetáculo de teatro, em que vou estar a colaborar no vídeo com o coletivo Silly Season, num espetáculo chamado Hotel Paraíso. Para já será isso.


Texto por Sofia Craveiro
Fotografias cedidas por João Cristovão Leitão

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