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Jorge Pina: “Vou sempre querer ser melhor, mas nunca melhor do que ninguém”

Jorge Pina destacou-se como atleta de alta competição no pugilismo nacional, tendo vencido vários títulos em vários escalões. Em 2004, perdeu a visão enquanto se preparava para tentar alcançar o título de Campeão do Mundo, o que o levou a desistir desse sonho. Porém, a sua resiliência e força de vontade levaram-no a procurar outras modalidades, como o atletismo, e a fundar, em 2011, a Associação Jorge Pina. Esta tem como objetivo mostrar que o desporto pode ser inclusivo, independentemente da condição física ou social de quem o pratique.

Texto de Mariana Moniz

Jorge Pina. Créditos: David Cachopo

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No dia 9 de março sentámo-nos à frente do ex-pugilista Jorge Pina num dos ringues da Academia que fundou, em Marvila, a 26 de novembro de 2021. Esta academia foi fruto do desenvolvimento e do crescimento da Associação Jorge Pina, criada em 2011, e surgiu da necessidade de criar um espaço que se dedicasse à prática desportiva, mas também à formação de jovens carenciados, discriminados ou com necessidades educativas especiais.

Nascido em 1976, Jorge Pina é o quinto filho de sete irmãos. Praticou várias modalidades desportivas até que se apaixonou pelo boxe, tendo iniciado uma carreira intensa enquanto pugilista no Sporting Clube de Portugal.

Acabou por se tornar uma referência no pugilismo nacional e ganhou vários títulos na modalidade. Contudo, em 2004, o sonho de se tornar Campeão Mundial foi interrompido por uma lesão grave, acabando por perder 90% da visão.

Este acontecimento da sua vida obrigou-o a abandonar o pugilismo a nível profissional, mas, em 2006, decidiu focar-se no atletismo e chegou a participar nos jogos paralímpicos de Pequim, Londres e Rio de Janeiro.

Atualmente, mantém-se conectado ao boxe através do ensino da modalidade desportiva. Com a fundação da Associação Jorge Pina, quis dar a conhecer a sua história e inspirar os jovens a seguir os seus sonhos. Dá palestras em escolas, empresas e prisões, pois considera importante “consciencializar as pessoas de que nunca é tarde para a mudança”.

Jorge Pina é o exemplo de que as adversidades da vida não precisam de nos moldar de uma forma negativa. Confessa que, com a perda de visão, conseguiu finalmente começar a ver o mundo e aceitar os outros independentemente das suas diferenças. Percebeu que não tinha de procurar superar o adversário, mas sim a si próprio. Hoje em dia, tem como objetivo formar pessoas, incutir valores de inclusão, “ser feliz e fazer os outros felizes”.

Academia Jorge Pina. Créditos: David Cachopo

Gerador (G.) – Cresceste num bairro social. De que forma isso moldou a tua vida?

Jorge Pina (J. P.) – Os meus pais vieram de Cabo-Verde, eu fui feito em Angola e nasci no Algarve, em Portimão [risos]. Depois mudámo-nos para Lisboa para que os meus pais pudessem trabalhar. O meu pai era polícia, nunca estava em casa. A minha mãe saía muito cedo para trabalhar e só chegava a casa durante a noite. Acabei por estar sempre muito sozinho. Houve coisas boas! Tive muitos amigos, conheci muitas pessoas. Tenho boas recordações, claro. Lembro-me de brincar e jogar na rua quando morávamos num bairro de barracas, no Rêgo. Depois, as barracas foram destruídas e eu fui morar para a Zona J de Chelas, com uns 15 ou 16 anos, antes de ir para o bairro da Amadora.  Eram bairros sociais, bairros problemáticos. Fui um jovem delinquente e tive alguns processos com álcool e drogas. O desporto foi o que me ajudou a encontrar um caminho, a tornar-me diferente, mais social. Experimentei vários desportos desde judo, futebol, rugby. E acabei por me apaixonar pelo boxe.

G. – O que te fez então escolher o boxe aos 11 anos?

J. P. – Sempre gostei do Muhammad Ali [pugilista] e tinha alguns amigos que faziam boxe. Via este desporto como aquela coisa para os duros, para os fortes [risos]. Então, em vez de andar na rua, procurei uma modalidade que me fizesse assim, forte.

G. – Como foi representar o Sporting durante sete anos e de que forma os títulos que conquistaste conduziram o resto da tua carreira?

J. P. – Foi bom ser campeão e receber vários títulos, sim. Mas não foram esses prémios que moldaram a minha vida, foi a aprendizagem que adquiri com o desporto e com o boxe. Costumo contar a história do meu combate em Espanha muitas vezes. Esse combate tinha-me corrido tão bem, tão bem, tão bem que eu pensei que tivesse ganho! Lembro-me de pensar, com toda a certeza, que tinha ganho o combate. Mas em vez de me darem a vitória, deram-me a derrota. Não consegui digerir essa situação. Comecei a ter ódio, raiva dentro de mim. Mais tarde, quando regresso a Espanha, dizem-me que o António Barreiro, o meu adversário, não iria poder combater mais, pois corria o risco de ficar cego. Eu, com o meu ódio e com a minha raiva, pensei que era bem merecido. Não sei se foi Deus, se foi o universo, mas a pessoa que acabou por perder a visão e deixou de fazer aquilo que mais gostava fui eu. Aprendi que nunca mais iria desejar mal a alguém. Todo o mal que eu desejasse iria cair em cima de mim a dobrar ou a triplicar. Aprendi que precisava dos meus adversários e que, na nossa vida, vamos sempre precisar uns dos outros para crescer e para evoluir. Ainda bem que existem pessoas melhores do que eu, pois são essas que me fazem trabalhar mais. Vou sempre querer ser melhor, mas nunca melhor do que ninguém. Aprendi a aceitar a vida, a aceitar os outros. O boxe também me trouxe resiliência. Não desisto facilmente dos meus objetivos, porque tudo na vida requer trabalho, não é só sorte. Estamos aqui hoje, neste espaço, [Academia Jorge Pina], porque eu quis trabalhar e fazer pelos outros. Tudo o que faço hoje, veio do desporto. Quero mostrar às pessoas que não é por termos nascido num bairro social ou nascido pretos, que não podemos fazer as coisas à nossa maneira se trabalharmos para isso. Eu consegui criar este espaço maravilhoso, porque acreditei que era possível.

Jorge Pina. Créditos: David Cachopo

G. – Em 2004, o teu sonho de te tornares campeão mundial foi interrompido por essa lesão grave. Conta-nos um pouco sobre isso.

J. P. – Estava a treinar em Espanha para atingir esse título, quando, de repente, comecei a sentir umas borbulhas nos olhos. Fui visto por um oftalmologista, mas ele não conseguiu determinar a gravidade do problema. Então decidi continuar a treinar. Fui combater no Algarve e na Polónia, mas depois, ao regressar, comecei a sentir que não aguentava a luz nos olhos. Tive de ser operado de urgência, mas essa cirurgia não correu bem. Fui operado uma, duas, três vezes. A retina ficou dobrada e acabei por cegar totalmente do olho esquerdo. Vejo 10% do olho direito. A verdade é que, conforme me iam operando, mais ia perdendo a visão. Até que cheguei ao ponto em que estou hoje.

G. – Achas que se tratou de algum tipo de negligência por parte dos médicos?

J. P. – Não sei, mas também nunca me questionei. Eu entrei no hospital a ver e saí assim, neste estado. Sei que os médicos não me queriam fazer mal [risos], mas olha aconteceu. Não ia ganhar nada se fosse com isso para tribunal, ia entrar novamente num processo de ódio, raiva e não queria trazer esses sentimentos de volta. Acabei por aceitar a minha condição de vida.

G. – E o que sentiste quando percebeste que não poderias voltar a combater?

J. P. – Foi um momento de tristeza e dor, mas que durou pouco tempo. Ainda estava no hospital quando um amigo me ligou a perguntar se eu queria começar a correr, pois ele conhecia um treinador de atletismo que trabalhava com atletas invisuais. Disse logo que sim! Saí do Hospital de Santa Maria e fui ter com o treinador José Santos ao Estádio Universitário para começar a treinar. Nos dias seguintes, já estava a preparar-me para ir ao Campeonato do Mundo em São Paulo. Fui a esse campeonato e depois comecei a treinar para os jogos paralímpicos de Pequim de 2012. Todos acharam que eu estava maluco [risos]. Fui aos de Pequim, de Londres e do Rio de Janeiro. Entretanto, apanhei COVID-19 e tive um colapso nas vértebras, o que me impediu de ir aos jogos em Tóquio. Como não pude continuar a correr, decidi focar-me num novo desafio: o ciclismo. Mandei fazer uma bicicleta tandem [dois lugares] e, em julho deste ano, vou sair de Portugal e vou até ao Vaticano de bicicleta. Vou pedalar durante 19 dias. Enfim, gosto de coisas assim um pouco malucas [risos]. Sou louco, mas um louco saudável. Acima de tudo, quero pôr as pessoas a pensar nesta transcendência da loucura e das nossas capacidades. Quero falar com várias comunidades de cada região, dar o meu testemunho e mostrar que, no fundo, somos todos iguais. É o amor que consegue mudar o mundo, não são as religiões, não é a raça, não é a cor. Temos de lutar para sermos felizes. Isso é que é o mais importante na vida.

Entrevista a Jorge Pina. Créditos: David Cachopo

G. – Porque dizes que só começaste a ver quando ficaste cego?

J. P. – Porque, ao longo de muitos anos, eu não vi, não senti, não fui eu na minha essência. Preocupava-me em ter coisas materiais, em ser o melhor. Agora, eu quero apenas ser. E eu nunca fui. Temos tendência para olhar muito para nós e pouco para os outros. Ou, se olhamos para os outros, olhamos de forma errada. Antes eu via o mundo e queria o mundo, mas de uma forma material. Agora não. Agora quero sentir, aproveitar, estar e fazer os outros felizes. Aprendi a filtrar e a olhar para a vida de uma forma diferente. Ainda bem que agora vejo melhor do que via antes, senão continuava cego, perdido no mundo e a querer vivê-lo da forma errada. 

G. – Com que objetivo fundaste a Associação Jorge Pina em 2011?

J. P. – O que me levou a fundar a Associação foi o início da minha vida. Não tive a oportunidade de conhecer o desporto de uma forma mais acompanhada, nem aprendi logo que benefícios poderia tirar desta ferramenta. Quis agarrar nestes jovens, tirá-los da rua e apresentar-lhes o desporto e os novos caminhos que poderiam seguir. Arranjei este espaço e agora é sempre a sonhar. Percebi que podia usar a minha história para ajudar pessoas.

G. – Quão importante é a prática da cidadania, da inclusão social e do combate à discriminação no mundo do desporto?

J. P. – É muito importante. Se reparares, independentemente das guerras que possam existir no mundo, no desporto todos acabam por se unir. Não existem julgamentos, ou pelo menos, não deveriam existir. Numa corrida de atletismo, os vários atletas, de vários países diferentes, estão lá para confraternizar e para se apoiarem. Ganhe quem ganhar. O desporto ensina-nos a aceitar a derrota e a cooperar uns com os outros. Ensina-nos a ter fair play [jogo justo].

Entrevista a Jorge Pina. Créditos: David Cachopo

G. – E dirias que esses também são os principais valores que regem a Associação e a Academia Jorge Pina?

J. P. – Sim, sem dúvida. São os principais pilares. Ninguém pode ficar de fora, daí a inclusão. E tem de haver harmonia e paz, mas uma paz que seja interior. Quero que eles [jovens da academia] aprendam a moldar o seu interior, para que depois isso se reflita nos seus atos. Temos de aceitar o mundo e as suas imperfeições. Se tivermos um bom interior, se formos boas pessoas, não nos deixamos afetar pelo exterior e aprendemos a lidar com ele. Atualmente, trabalhamos com todo o tipo de jovens, mas, no início, estávamos dedicados a um grupo de pessoas mais restrito. Trabalhávamos com jovens diferenciados, que vinham de bairros sociais ou que eram racializados. Agora já não queremos que haja essa diferença. Temos todo o tipo de pessoas aqui dentro, de todos os estratos sociais, com deficiência, sem deficiência.

G. – Quais são as principais atividades da academia?

J. P. – Temos um torneio internacional de boxe, todos os anos, dirigido a todos os escalões, femininos e masculinos. Em setembro, costumamos realizar uma corrida durante a Semana Europeia do Desporto. Para além disso, temos um mapa de aulas que funciona todos os dias, que inclui desportos de combate, fitness, aulas de grupo. Também temos uma sala de estudo para que os jovens possam fazer os seus trabalhos, damos formações e ainda temos um espaço para meditar e orar. É o “Templo”. Um templo onde também não existe diferença.

G. – Apesar de todas as adversidades da tua vida, podes dizer que hoje és um homem realizado pessoal e profissionalmente?

J. P. – Posso dizer que sim, mas, quem me conhece, sabe que eu nunca estou satisfeito com nada [risos]. Quero sempre mais! Tenho de ter sempre alguma coisa para fazer, um novo desafio para me fazer mexer e para me fazer pensar. Não quero deixar de sentir todas estas sensações boas e más da vida. Não gosto que as coisas estejam demasiado perfeitinhas, sabes? [risos]. Gosto de sentir que estou a lutar e a trabalhar para que aconteça. Com a minha lesão, passei de atleta a treinador. Agora quero fazer campeões. Mas, para eles serem campeões no ringue, têm de o ser na vida primeiro. Têm de ter os valores bem vincados. Ao formar pessoas, consigo sentir-me vivo, consigo sentir-me útil. Não vale a pena ficar a lamentar-me. Com o tempo, espero que esta associação consiga crescer e ajudar cada vez mais pessoas. Espero que, daqui a uns tempos, eu consiga olhar – com a minha visão diferente da dos outros [risos] – e sorrir por ver os resultados e os frutos deste projeto.

Entrevista a Jorge Pina. Créditos: David Cachopo

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