Morreu esta segunda-feira o Jorge Salavisa.
É daquelas frases que dói escrever.
Não mais verei aquele olhar atento e com ausência de agressividade.
O Jorge olhava nos olhos e isso era suportável.
Já o conheci careca. Careca de estar careca. Faz uns anos, é certo. Nos idos de Oitenta. O Jorge aceitou fazer parte do júri de dança da I Mostra Portuguesa de Artes e Ideias, que organizei em 1987. Com a Anna Mascolo, a Wanda Ribeiro da Silva, o Rui Horta, a Olga Roriz. Em 1988, andámos pelo país a ver dança, para uma nova iniciativa que organizei. Não amiúde, soía assistirmos a coisas interessantes. Frequentemente, a coisas más. Eu não resistia, quando as coreografias eram más, começava a transpirar, era físico. O Jorge, com a sua bonomia, acalmava as hostes.
Desde esse tempo, nunca mais nos deixámos de encontrar. Não nos víamos muito, mas, de cada vez que nos víamos, sentia-me melhor. O Jorge fazia sentir-me melhor pessoa. Era o homem mais elegante que conheci. Mesmo se tinha alguma observação negativa a fazer, sobre uma situação ou sobre alguém, fazia-o ao de leve, ou pelo menos, dando a ideia de leveza. A sua elegância estava nas palavras, nos gestos, no sorriso. Vestia-se como um dandy. Vivia como um dandy. Como ficou feliz quando se mudou para a casa chique de Santa Catarina! Gostava de lá estar e sabia que era a sua última morada.
As íntimas dores, os seus sucessos britânicos, não os vivi no tempo e no espaço de perto — não éramos amigos do quotidiano. Nos últimos anos, almoçávamos de vez em quando. Sempre conversa boa, saía de coração cheio, pronto para novas batalhas, com um sorriso a acompanhar. Saía prometendo que organizava jantares e ele dizia sempre que sim. E quando nos encontrávamos perguntava quando íamos jantar e eu voltava a prometer que organizava um jantar. No ano passado, o Jorge fez oitenta anos. No dia seguinte ao seu aniversário, estávamos na estreia de uma peça do Paulo Ribeiro com a Companhia Nacional de Bailado, no Teatro Camões. Depois da peça, houve um beberete. E tive de insistir, para que se dissessem umas palavras pelo seu aniversário. E foi tudo pequeno. O Jorge, com a sua grandeza, ficou triste por dentro, mas nada comentou. Estamos a falar de um dos grandes portugueses das últimas décadas, faz oitenta anos e é isto. Pobreza envergonhada? Não. É mesmo miséria franciscana. E eu a dizer, temos de ir jantar. Depois veio o Covid e algumas conversas telefónicas. Qual jantar qual quê. E o Jorge cada vez mais sozinho.
Agora foi-se embora. Não mais poderei adiar o jantar. Agora terei de deixar, sempre, o lugar posto na mesa da ausência. O Jorge é mais que uma pessoa. É uma pessoa, é certo. Mas é uma imagem, um símbolo, uma vitória, uma derrota, uma vida circulante de verde anos até ao ocaso. O Jorge é a celebração suprema da elegância, e eu tive o privilégio de poder partilhar os seus gestos, como uma lenta coreografia na passagem dos dias. Uma escultura em movimento numa Lisboa agora mais pobre e com menos brilho.
Hoje, só a tristeza, um peso no lugar do peito. Amanhã, quererei que o que resta de ti seja uma luz iridescente a colorir o horizonte.
E depois, serás esquecido. Sei que serás esquecido. Mais tarde ou mais cedo, todos somos esquecidos. Mesmo eu, se a senilidade me chegar, não saberei pronunciar o teu nome, provavelmente nem sequer o meu. Talvez deem o teu nome a uma rua, um teatro, uma sala. Daqui a uns anos, passarás a ser um nome pelo qual se chama a sala. Mas quem chamar esse nome não saberá que almoçámos por vezes e que nesses momentos me senti singular e privilegiado.
Esperarei jantar contigo, afinal, noutro banquete, noutro lugar, um dia.
-Sobre Jorge Barreto Xavier-
Nasceu em Goa, Índia. Formação em Direito, Gestão das Artes, Ciência Política e Política Públicas. É professor convidado do ISCTE-IUL e diretor municipal de desenvolvimento social, educação e cultura da Câmara Municipal de Oeiras. Foi secretário de Estado da Cultura, diretor-geral das Artes, vereador da Cultura, coordenador da comissão interministerial Educação-Cultura, diretor da bienal de jovens criadores da Europa e do Mediterrâneo. Foi fundador do Clube Português de Artes e Ideias, do Lugar Comum – centro de experimentação artística, da bienal de jovens criadores dos países lusófonos, da MARE, rede de centros culturais do Mediterrâneo. Foi perito da agência europeia de Educação, Audiovisual e Cultura, consultor da Reitoria da Universidade de Lisboa, do Centro Cultural de Belém, da Fundação Calouste Gulbenkian, do ACIDI, da Casa Pia de Lisboa, do Intelligence on Culture, de Copenhaga, Capital Europeia da Cultura. Foi diretor e membro de diversas redes europeias e nacionais na área da Educação e da Cultura. Tem diversos livros e capítulos de livros publicados.