O pacote de medidas “mais habitação” fica longe da resolução dos verdadeiros problemas que compõem uma crise no acesso a um direito fundamental. As reações foram imediatas e a contestação veio, principalmente, de quem é proprietário e das instituições que os representam. A balança está desequilibrada. Quem lucra com a habitação queixa-se na mesma proporção em que este problema afecta milhares de pessoas. O Governo repete os falhanços dos últimos anos e espera resultados diferentes.
Num pacote de medidas que assenta, primordialmente, em conceder benefícios fiscais a proprietários1 que coloquem as suas casas no mercado de arrendamento, apelidar as medidas de “bolivarianas”2, António Costa de “comunista”3, e afirmar que “voltamos ao PREC”4, não deixa de ser irónico.
Enquanto organização pelo direito à habitação, conhecemos os problemas a partir da base, de quem sofre diariamente com o fiasco das políticas públicas de habitação. Quem recebe o ordenado mínimo e não tem como pagar a renda, quem recebeu a notificação de despejo e não tem alternativa, idosos que têm de escolher entre os medicamentos e a renda, famílias monoparentais que não conseguem garantir aos filhos uma habitação digna, e tantas pessoas que adiam a sua vida por não terem este direito garantido. Estas pessoas não estão contempladas nas medidas e não têm voz no espaço público para o demonstrar.
O documento que está agora em consulta pública permite-nos, sem esmiuçar todas as medidas, expor algumas conclusões:
A maioria das propostas assenta no incentivo à renda acessível. Importa reforçar a ineficácia desta abordagem, que garante isenção fiscal aos proprietários face a uma diminuição de apenas 20% nas rendas. E se as palavras enganam, as contas não, e podemos ver no mapa o que significa “renda acessível”5. Já temos vindo a expor6, que esta renda não é viável para mais de 70% da população7.
Sendo um regime de renda transversal às novas medidas, perguntamos: quem são os agregados que, com os 35% de taxa de esforço necessários para serem elegíveis, conseguem pagar esta renda? São estas as pessoas que têm os maiores problemas no acesso à habitação?
Outra das frentes é o apoio extraordinário ao pagamento das rendas. Quando aplicamos o apoio proposto, para aproximar a taxa de esforço dos recomendados 35%, até uma ajuda máxima de 200€, percebemos o desfasamento entre a realidade e a proposta.
Como é possível ver na tabela, mesmo com o apoio, os agregados ficam muito aquém da taxa de esforço recomendada de 35%. Mais ainda, esta taxa de esforço não tem em consideração as despesas fixas com a habitação, como a água, energia, comunicações, ou despesas base com a alimentação ou com os transportes. Mesmo reconhecendo que todo o dinheiro extra é bem vindo, ignorar estes factores e fixar uma taxa para todos os agregados é condenar milhares de famílias à pobreza.
A tabela demonstra também que apoiar as rendas, sem as baixar e controlar, não está a resolver o problema e configura uma transferência directa de capital do Estado para os bolsos dos proprietários, sem garantir que as famílias vão ter rendimento sobrante suficiente para uma vida digna.
Outro aspecto relevante é a limitação ao aumento das rendas que pode ter uma nuance positiva, se devidamente regulada: os proprietários deixam de poder fazer um novo contrato com a renda que entenderem, tendo valores limite para o aumento. Se estes valores forem altamente controlados podem evitar despejos por especulação, mas apesar disso é importante perguntar: de que serve vincular novas rendas às rendas proibitivas que temos hoje em dia? Mais uma vez, não estamos a dar resposta a quem mais precisa.
A utilização dos alojamentos devolutos para habitação é o que temos defendido como o caminho mais directo para a resolução do problema. O argumento de que esta crise pode ser resolvida com mais construção cai por terra quando os Censos8 nos dizem que há 723 mil alojamentos vagos e que mais de metade está pronto a habitar ou a precisar de obras ligeiras9.
Todas as lágrimas de crocodilo derramadas têm um motivo: a crença de que a propriedade privada é um direito absoluto, intocável e ilimitado, mesmo quando as casas estão vazias há décadas, e que se sobrepõe, sem critério, ao direito à habitação. Pensar a utilização destes imóveis para habitação é mais consequente e ambientalmente sustentável do que construir novo onde não há acesso à saúde, à educação, ao trabalho, à cultura, ao lazer e aos transportes.
No entanto, parece-nos errado o modo como o Governo propõe aplicar esta medida. Em primeiro lugar, parte da vontade dos proprietários de querer arrendar as casas ao Estado; em segundo, é inconcebível pagar ao proprietário uma renda até 10% acima do valor de mercado, isento de impostos; e terceiro, subarrendar a habitação a um agregado que consiga comportar essa renda com 35% de taxa de esforço, o que implica auferir um rendimento muito acima da média. Isto faz-nos retomar a primeira e mais relevante crítica a este pacote de medidas: quem são os agregados que vão beneficiar delas?
Uma leitura transversal permite-nos afirmar que os maiores problemas não estão a ser atendidos! Por isso saímos à rua, pelo direito à habitação e com o mote: Casas para Viver10, no dia 1 de Abril, no Porto e em Lisboa.
1https://www.publico.pt/2023/02/20/opiniao/opiniao/habitacao-estado-refem-mercado-2039546
2 https://www.porto.pt/pt/noticia/comunicado-sobre-as-medidas-de-habitacao-do-governo-entre-a-pulsao-bolivariana-perfumada-e-o-voluntarismo-liberal
4 https://eco.sapo.pt/opiniao/o-prec-na-habitacao/
5 https://public.flourish.studio/visualisation/12817222/
6 https://www.youtube.com/watch?v=FncH8eM-ibE&t=64s
7 https://public.flourish.studio/visualisation/12817435/
8 Instituto Nacional de Estatística - Censos 2021. XVI Recenseamento Geral da População. VI Recenseamento Geral da Habitação: Resultados definitivos.
9 O parque habitacional e a sua reabilitação - análise e evolução 2001-2011. INE, Lisboa. 2013 página 95
10 https://www.habitacaohoje.org/manifesta%C3%A7%C3%A3ocasasparaviver
-Sobre Habitação Hoje-
A Habitação Hoje é uma organização do Porto que luta pelo cumprimento absoluto do Direito à Habitação e para isso trabalha em duas frentes. Nas ruas e nos bairros, junto de quem é mais afectado pela falta de acesso a uma habitação digna e no estudo e desconstrução das políticas que nos trouxeram até aqui.