Flor de estufa é uma curta-metragem que nos conta o quotidiano silencioso de uma imigrante numa exploração agrícola, gritando-nos várias questões que se vivem em Portugal.
Sempre teve gosto pela escrita, pensando encontrar no jornalismo a única profissão possível para passar os dias a escrever e a aprofundar temas que lhe davam gosto. O que Laís Andrade não sabia era que o cinema assentava melhor na forma como queria mostrar o mundo. Licenciou-se em Ciências da Comunicação e recentemente concluiu o seu mestrado em Cinema na Universidade da Beira Interior. O trabalho final de curso viria a ser o motor para que levasse o tema “migração ilegal”, principalmente em Portugal, além-fronteiras.
Flor de Estufa foi feita com recurso a crowdfunding no PPL e é uma curta-metragem que nos traz, através de pouquíssimas palavras, o quotidiano silencioso de uma imigrante numa exploração agrícola. Um quotidiano marcado pela solidão e precariedade, sem nunca esquecer o que deixou para trás. Laís Andrade desafia-nos a olhar para a exploração dos imigrantes em Portugal, pelos olhos de uma trabalhadora de estufa.
Enquanto escreve a sua próxima curta – também sobre migração mas do ponto de vista legal e burocrático -, procura financiamento e trabalha na área do cinema, Laís vai apresentando Flor de Estufa em vários festivais, ganhou o prémio de melhor curta de Justiça Social, do prémio do público, no festival norte-americano Charlotte Film Festival e vai levar este tema ao ecrã do Festival Política que acontece em Lisboa de 21 a 24 de abril.
Em entrevista ao Gerador, Laís contou o processo de criação da curta e as histórias que lhe foram contando, abordando a (ainda) falta de representatividade não só de mulheres, mas de mulheres negras no cinema dos países falantes de língua portuguesa.
Gerador (G.) – A tua primeira curta é sobre uma temática que tem sido muito falada. O que te levou a escolhê-la?
Laís Andrade (L. A.) – Eu estava a trabalhar no verão, e lembro-me de ler uma notícia que dizia, “dois chefes de estufas presos por tráfico humano”. Eu cresci numa aldeia perto de Torres Vedras (a curta também foi gravada em Torres Vedras)e sempre soube da existência destas estufas então para mim era normal. Mas foi aí que pensei que se calhar, isto das estufas, era tráfico humano. Eu conheço pessoas que trabalharam em estufas, a minha mãe já chegou a trabalhar por pouco tempo nas estufas, ou seja, sempre conheci esta realidade e sempre vi as pessoas logo pela manhã à espera do transporte para irem para esses sítios, e depois nas carrinhas. Então era uma realidade tão próxima que eu sabia que havia ali algumas coisas que não estavam muito bem. Já tinha ouvido histórias, mas nunca tinha pensado em tráfico humano porque é sempre uma coisa que nos parece muito exótica, que acontece lá fora no Mediterrâneo. Foi aí que decidi pesquisar, e perceber o que é tráfico humano e o que é emigração ilegal.
G. – E qual a diferença entre emigração ilegal e tráfico humano?
L. A. – A principal diferença que encontrei é que o tráfico humano é involuntário. As pessoas ou são levadas contra sua própria vontade, ou tens consciência de que vais trabalhar para outro país, mas quando chegas lá fazes outra coisa completamente diferente e acabas por não conseguir fazer porque não tens acesso a documentação. Essa é a maior diferença. Na emigração ilegal podes ir simplesmente para outro país e não tratares da documentação por decisão tua, são outros motivos. Mas percebi que já tinha ouvido histórias de pessoas que, de facto, constituíam-se como tráfico humano porque tinham esse fator de engano, quando chegaram ao destino as condições não eram bem como elas achavam que ia ser, ou retiraram-lhes os passaportes. Nessa altura, fiz pesquisa e percebi que este tema me interessava mesmo. Confesso que na altura tive muito medo de tocar nesse tema porque era realidade muito, muito, diferente. Por isso também não fiz um documentário, porque não me senti preparada para ir mais a fundo neste tema.
G. – Que histórias encontraste nestas estufas?
L. A. – Quando estava a fazer a curta, já não estava em Torres Vedras, então fui mais atrás das pessoas que já conhecia e que sabia que tinham passado por esta experiência. Falei com a minha mãe que já tinha tido essa experiência, e ela contou-me imensas histórias que nem consegui incluir. Ainda visitei estufas, mas aquelas às quais tive acesso eram coisas mais legais, no entanto, tive dificuldade no acesso a esses lugares, não sei como consegui sequer gravar numa estufa. Não sei quais eram as condições das pessoas que lá trabalhavam porque fomos num dia em que não estava ninguém. É um tema no qual não me sentia preparada para entrar de cabeça com um documentário, por isso decidi ir pela ficção e pegar não só nas condições de trabalho, mas em quem é a pessoa por trás daquilo, quem é quando volta para casa, do que sente falta. Nesse sentido, falei com mais pessoa migrantes do que com pessoas que trabalhavam em estufas. Às vezes não quero falar sobre as violências em si, mas sobre quem sofre essas violências. Lembro-me de falar com uma pessoa que tinha migrado sem os filhos e ela sofria muito pela questão de não os conseguir trazer, inspirou-me muito nesta história.
G. – Sem querer desvendar muito… na curta, a casa onde ela vive é crua e desumana. É este o ambiente que estas pessoas encontram quando chegam a “casa”?
L. A. – Eu fiz a curta durante a covid, e isso dificultou-me alguns acessos, mas essa questão da moradia eu pesquisei muito, e vi muitas fotos de, por exemplo, 20 pessoas a viver num quarto. Eu fui buscar mais a realidade da minha região e da altura em que cresci do que a realidade de agora, que até tem tido mais destaque na zona de Odemira e Alentejo. Sabemos que a realidade são condições de habitação muito precárias. Era uma realidade que, na verdade, eu já conhecia, porque quando cheguei cá a Portugal a minha primeira casa também foi assim – 4 paredes e “entrem aí”. Praticamente não tinha divisões, por isso a casa que recriei é semelhante à essa casa onde cheguei. Por curiosidade, a estufa onde gravámos era, por coincidência do destino, porque foi a produtora a arranjar, a passos dessa mesma casa. As condições precárias são uma realidade que estamos a começar a ver agora nas reportagens, muito por causa da covid, mas é uma realidade que ainda quero explorar mais. Mas morar com 20 pessoas … quando é que tu tens um momento para te sentires um ser humano?
G. – Também abordas o tema da fiscalização destes espaços. Se existe uma fiscalização e um suposto controlo, porque é que isto continua a acontecer? O que te disse quem entrevistaste?
L. A. – A questão dela se esconder da fiscalização é baseada numa história real. Foi uma pessoa que eu conheci quando era criança e que me dizia que as pessoas escondiam-se no caixote do lixo para fugirem da fiscalização, e isso ficou-me na cabeça. Quando ouço estas histórias na perspetiva de pessoas migrantes, os fiscais são os maus da fita porque impedem o bom funcionamento do trabalho… Acho que o problema está na raiz, no país de onde estas pessoas vêm, que muitas vezes são países que foram colonizados e que até hoje, mesmo depois do suposto fim da colonização, não se conseguiram voltar a estruturar bem e fazem com que essas pessoas fiquem desesperadas que saem do país para qualquer coisa. Há pessoas que chegam a pensar que vão fazer uma coisa e fazem outra, mas, a partir do momento em que chegam, não sei quem responsabilizar, há tantas fiscalizações, mas nada muda? Os patrões não são responsabilizados? Sei de pessoas que recebiam salário mínimo porque ficava tabelado, mas depois descontavam para a casa e outras coisas, e as pessoas ficavam sem nada, ou com muito pouco. A pessoa fica numa situação de prisão porque com o que sobra nem sequer podem voltar para o seu país. Também se prende com uma questão: xenofobia. É algo ainda muito grande no nosso país porque normalmente quando há pessoas portuguesas nesses trabalhos as pessoas portuguesas não são sujeitas a essas condições. Então é importante, pois às vezes as queixas dos imigrantes não se enquadram no trabalho de portugueses
G. – Esta curta é marcada pelo silêncio. É propositado?
L. A. – Eu decidi fazer uma curta em mudo porque estava indecisa sobre que nacionalidade seria a personagem. Eu tenho um background brasileiro, a atriz que fez o filme é angolana, as pesquisas que tinha feito era com pessoas de sudeste asiático. Portanto, há muitos países envolvidos. Então decidi criar uma personagem que não tivesse falas para que pudesse representar qualquer migrante, para que qualquer pessoa se pudesse rever nela e mostrar o silenciamento dessas pessoas.
G. – E como surgiu a Nádia Yracema como personagem principal na tua curta?
L. A. – Eu já queria que fosse uma atriz negra por uma questão de representatividade e identificação. Lembro-me de pesquisar e de encontrar muito poucas atrizes negras em Portugal ou pelo menos representadas na Internet, muito poucas entrevistas também, ou agências. Entretanto falei com uma atriz que conhecia, e ela recomendou-me a Nádia, e foi a pessoa que me pareceu mais adequada para o papel, vi uma tape, e vi que a forma que representava era muito bonita. Vimos também que tínhamos histórias muito parecidas, apesar de ela vir de Angola e eu do Brasil. E eu adoro o trabalho dela, tanto em teatro quanto em cinema, por isso foi um encontro incrível.
G. – O facto de seres também emigrante influencia a forma como queres que o cinema um dia seja?
L. A. – Sim, porque o cinema e a televisão em Portugal (a televisão foi o que tive mais acesso ao crescer), sempre foram lugares em que não me revia, tanto como mulher emigrante, negra, não branca… Agora está a começar, a passos pequenos, a haver mais representatividade, mas ainda é uma representativa muito nesse lugar de violência, ou seja, a atriz negra para empregada doméstica ou numa cena colonial violenta, e não como protagonista de uma comédia romântica que represente uma pessoa normal. A forma como eu vejo o cinema e televisão portuguesa ainda é muito critica nesse sentido, mesmo brasileiros, pessoas de leste europeu são sempre colocados num lugar… ainda há pouco tempo vi uma série portuguesa em que a empregada era russa, mas ela não era russa, até era portuguesa a fazer o sotaque russo, em 2020! Continuamos a ter pouquíssimas pessoas negras no cinema, tanto a estudar, quanto a fazer, a chegar a lugares de decisão, e isso reflete-se.
G. – Achas que os cursos de cinema, nomeadamente o teu mestrado, devem falar sobre estas questões de representatividade, e também género?
L. A. – No meu curso, tivemos questões de género abordadas, porque tinha pelo menos uma professora feminista, e a área de pesquisa dela era sobre a representação feminina no cinema. Em termos de raça e migração, onde eu estudei, não foram abordados esses temas. Mas se calhar tem que ver com quem são os professores. Eu nunca tive um professor negro em todo a minha vida, ou professores migrantes. Os temas não devem interessar só a quem é a minoria. No meu mestrado decidi fazer, por iniciativa própria, uma pesquisa sobre mulheres negras realizadoras nos países de língua oficial portuguesa, e foi uma pesquisa que me deixou chocada com a falta de pessoas que existe, no Brasil que é um país gigante, um pais múltiplo, com pessoas negras a serem mais de metade da população, um país que tem um cinema até bastante desenvolvido…, mas descobri que na altura só haviam duas mulheres negras a fazer longas-metragens até então. Em Portugal e nos países africanos de língua oficial portuguesa, eram só curtas-metragens. Ou seja, estas pessoas são poucas e as que existem não estão a ser faladas, existe um problema muito grande de distribuição comercial também.
G. – Escolheste uma produção maioritariamente feminina foi de propósito?
L. A. – Foi [risos]. Eu vou dizer uma coisa que há quem não goste muito que se diga, mas acredito que, quando existe um grupo de minoria, tu tens de fazer um esforço para colocar essa minoria num lugar de destaque. Se me apresentares uma mulher boa e um homem bom, e eu escolho a mulher boa, porque tem de haver um esforço. A primeira pessoa a juntar-se a mim foi a Mariana Roque, assistente de realização, eu estava a fazer um estágio com ela na altura e foi a pessoa que me ajudou com o guião, mesmo a desenvolver desde o início. Depois a Rita Paiva é da direção de fotografia. Para o som foi a Mariana e a Margarida na produção, se bem que a produção é uma função muitas vezes mais assumida por mulheres, assim como o guarda-roupa, pela Sara, e a arte, pela Mara, são funções também com mais mulheres.
G. – Tens apresentado a tua curta em vários festivais, incluindo recebeste um prémio num festival norte-americano…
L. A. – Estreei a Flor de Estufa no Curtas Vila do Conde, foi na secção para realizadores iniciantes, tive oportunidade de ir lá presencialmente, e foi ótimo, tem uma curadoria muito boa, está bem organizado. Depois estive cá em Lisboa no Olhares do Mediterrâneo, um festival focado em cinema feito por mulheres. Um festival feito por mulheres, para mulheres e que tinha filmes de mulheres e que, ainda por cima, tinha este tema da migração. Foi engraçado porque eles tinham a seção Migração, Estudante e Principal, e eu inscrevi-me em todas, e fiquei na seção de Estudante e Migração. Estive nesse festival americano o Charlotte Film Festival, não consegui ir presencialmente, mas ganhei um prémio de melhor curta de justiça social do prémio do público. Estive numa mostra de cinema brasileira de pessoas negras, no Espírito Santo, a minha terra natal. E agora, em abril, vou estar no Festival Política que acontece de 21 a 24 de abril, em Lisboa, e vou estar noutras cidades de Portugal também. Estou contente por fazer parte deste festival porque é um festival que fala sobre política e este tema que trago na Flor de Estufa é um tema que não tenho vergonha de dizer que é político.
G. – Quem são as inspirações que te levam a abordar estas temáticas?
L. A. – Para este projeto, gosto de um filme brasileiro que se chama A que horas ela volta, da Anna Muylaert, um filme que fala sobre uma trabalhadora doméstica negra, na casa de patrões brancos, e é um filme que tem uma sensibilidade muito grande. Mostra a história de uma mulher que sai do Nordeste do Brasil para trabalhar numa grande cidade e num país tão grande como o Brasil é quase uma migração, e não volta à terra natal dela. Ela acaba por criar o filho dos patrões e não estar presente para filha dela. Gosto muito também do Taika Waititi, parece que não tem a nada a ver com o tema da curta, mas principalmente o filme Boy, a forma como ele retrata a visão das crianças, a visão das minorias, porque ele é uma pessoa indígena e a forma natural e descontraída como retrata as pessoas indígenas na Nova Zelândia, inspira-me muito. Destaco ainda o filme Atlantique da Mati Diop, sobre migrantes no mar, o Feliz Como o Lázaro, de Alice Rohrwacher, sobre exploração agrícola, e a série Ramy.