O primeiro sobressalto tecnológico deu-se com José Sócrates, o segundo com a covid. São duas entidades mal-amadas, sabemos, mas extremamente importantes para o futuro deste país.
O governo de Sócrates, pela mão de Mariano Gago e Carlos Zorrinho, promoveu um salto brutal na digitalização da nossa economia, do ensino, do ambiente e da administração pública. Para só citar alguns domínios relevantes. Na economia, abriu as portas à nova indústria, de base digital, renovando empresas, processos e produtos. Muitas das empresas que hoje competem internacionalmente devem-lhe o estímulo, os apoios, mas sobretudo o indicar caminho. No ensino, Sócrates teve a ideia de distribuir computadores pelos alunos. Obrigando todos, alunos, professores e pais, a uma acelerada adaptação. Muitos criticaram e gozaram, mas hoje é evidente que se tratou de uma aposta visionária. No ambiente, Portugal, então país de lixeiras a céu aberto, ignorante das mais básicas preocupações ambientais, modernizou-se com variados programas de gestão de resíduos, reciclagem, diminuição da poluição e sustentabilidade de consumos. A digitalização da administração pública sofreu uma verdadeira revolução. Recorde-se o tempo em que o acesso a qualquer documento demorava semanas, meses e muita paciência, e passou a estar ao alcance de um clique. Ou refira-se a Loja do Cidadão, uma inovação que outros seguiram.
O sobressalto tecnológico provocado pela pandemia ainda está a ser mais vigoroso. Obrigou a maioria dos portugueses a um upgrade digital. O computador, ligado à Internet, tornou-se no grande meio de contacto com o mundo. É através dele que agora se trabalha, se aprende, se fala com familiares e amigos, se encomenda comida e outros bens de consumo. Jovens e velhos, ricos e pobres, nas mais diversas atividades e no lazer, tiveram rapidamente de aprender a usar zooms e outras plataformas de comunicação digital. O próprio telemóvel, até há pouco visto como um mero telefone, revelou ser uma máquina poderosa, oferecendo múltiplas e diversificadas apps para praticamente todos os fins. A migração do computador para o telemóvel, evidente noutros países, acelerou também por cá.
Com a covid, os portugueses realizaram num ano o que com programas de educação tecnológica levaria uma década.
Mas o grande impacto da situação atual é também o que resulta da perceção do atraso. Na década que separa Sócrates da covid, a evolução tecnológica do país foi demasiado lenta. Muitas empresas continuaram a imaginar que conseguiriam sobreviver sem se adaptarem às tecnologias digitais. Daí que hoje estejam em grandes dificuldades. A educação continuou a insistir nos velhos modelos sem qualquer ligação à realidade. A atual polémica com o ensino online é sintomática. Esquece que todo o ensino em breve será online, ficando a componente presencial para a interação humana.
Enfim, o negacionismo também aumentou bastante, muitas das vezes usando o próprio meio que se pretende denegrir. Os constantes ataques à Internet, por exemplo, sobretudo como lugar de todos os perigos, iludiram a realidade de uma sociedade que já não vive sem este poderoso meio. A tecnologia digital é a cultura do nosso tempo. Ponto. Sem ela regredimos.
Daí também que tenha sido precisamente a cultura artística um dos setores mais fortemente atingidos pelas consequências da pandemia. Não o foi pela natureza da atividade. A cultura artística, tal como a conhecemos, sempre teve de lutar ferozmente para sobreviver. Mas, desta vez, a crise é mais profunda.
A cultura artística tornou-se conservadora, imaginou-se como uma forma de resistência contra a tecnologia digital, regrediu frequentemente para formas de expressão obsoletas. Dou um exemplo elucidativo. O Museu de Arte Contemporânea, vulgo Museu do Chiado, tentando adaptar-se ao confinamento, oferece cursos online. Muito bem. Mas de quê? De desenho. Ou seja, regressando ao século 19 em vez de avançar para o 21.
A cultura artística continua a viver sob o paradigma da educação pública. No pressuposto de que o Estado deve pagar a cultura para que o povo se torne mais civilizado. Sucede que, entretanto, surgiu um meio que disponibiliza todo o conhecimento que existe, pelo que a educação de cada um passou a ser tarefa do próprio. O modelo da educação pública através da arte ruiu.
Mas a inadaptação da cultura artística às tecnologias digitais é particularmente grave por duas outras razões. No meio empresarial vai-se tornando consensual que a tecnologia por si só não basta. Falta a imaginação. A tecnologia consegue otimizar a cadeia de produção, mas o produto só é valorizado com conhecimento e arte. Daí, a necessidade imperiosa de juntar tecnologia digital e criatividade artística. Sem esta simbiose nada de relevante se consegue.
Por outro lado, a evolução tecnológica não só não parou como acelerou com a pandemia. Se até ontem os que, por exemplo, desdenharam a Internet, agora percebem o seu grau de analfabetismo, hoje muitos irão ficar para trás ao não entender o que aí vem. Tecnologias como o 5G, a Realidade Aumentada, a modelação e impressão 3D, o IoT, Internet das Coisas, o Blockchain ou, ainda mais visionariamente, a computação quântica, entre outras, estão a transformar de novo e radicalmente o panorama tecnológico do nosso tempo e o do futuro. Neste processo a cultura artística é fundamental. Mas, infelizmente, os artistas não estão preparados.
Agora que aí vem uma bazuca, vejo muita gente a pedir ao Estado dinheiro para a cultura. Mas vejo poucos a exigir uma revolução no ensino artístico; uma alteração profunda nos processos de decisão das múltiplas entidades que gerem a atividade cultural; uma renovação do seu pessoal, na maioria incompetente e desatualizado; a digitalização do património cultural; enfim, uma mudança de objetivo.
A cultura serve para transformar a sociedade. Na sociedade digital a cultura será digital ou não será nada.
-Sobre Leonel Moura-
Leonel Moura é pioneiro na aplicação da Robótica e da Inteligência Artificial à arte. Desde o princípio do século criou vários robôs pintores. As primeiras pinturas realizadas em 2002 com um braço robótico foram capa da revista do MIT dedicada à Vida Artificial. RAP, Robotic Action Painter, foi criado em 2006 para o Museu de História Natural de Nova Iorque onde se encontra na exposição permanente. Outras obras incluem instalações interativas, pinturas e esculturas de “enxame”, a peça RUR de Karel Capek, estreada em São Paulo em 2010, esculturas em impressão 3D e Realidade Aumentada. É autor de vários textos e livros de reflexão, artística e filosófica, sobre a relação Arte e Ciência e as implicações, culturais e sociais, da Inteligência Artificial. Recentemente, esteve presente nas exposições “Artistes & Robots”, Astana, Cazaquistão, 2017, no Grand Palais, Paris, 2018, na exposição “Cérebro” na Gulbenkian, 2019 e no Museu UCCA de Pequim, 2020. Em 2009 foi nomeado Embaixador Europeu da Criatividade e Inovação pela Comissão Europeia.