Vivemos hoje numa época de incongruências. A União Europeia aprova o Regulamento IA no mesmo ano que em Portugal se celebram 50 anos de Democracia. Mas, nesta idade digital ainda se vêm perpetuados - e até ressuscitados - por toda a Europa ideais do passado, realidades que os nossos pais e avós lutaram para eliminar, posições que pertencem a outros séculos e lá deveriam ter morrido.
Fala-se de "ideologia de género" e misandria em discursos inflamados que argumentam que igualdade de género é um cancro que destruirá a sociedade. Mas, a nível mundial, as mulheres na força de trabalho recebem menos, ocupam menos cargos de chefia e participam menos nas áreas de STEM. O Fórum Económico Mundial concluiu recentemente que serão necessários mais 132 anos para alcançar a igualdade de género à escala global 1e de acordo com um estudo feito pelo Banco Mundial, tendo por referência 190 países, as mulheres gozam, em média, de apenas 64% das proteções legais que os seus homólogos masculinos detêm2. Mais ainda, as mulheres representam apenas 29% dos cargos científicos e de investigação e desenvolvimento a nível mundial3. Assim, poderemos concluir que afinal as mulheres talvez não sejam umas histéricas que andam para aí a berrar sem razão.
Mesmo no que toca à tão elogiada transição digital, vista como solução para a maior parte dos problemas mundiais, preocupantemente, a UNESCO concluiu que as mulheres têm 25% menos probabilidades do que os homens de saber como tirar partido do uso de tecnologias digitais4 e já foi demonstrado que várias ferramentas de Inteligência Artificial (IA) perpetuam estereótipos associados às mulheres dando aso a situações discriminatórias que são prova de que os problemas persistem.
Ao contrário do que se poderia pensar, a utilização de sistemas de IA não elimina a possibilidade de discriminação. Se o sistema sofrer de viés algorítmico pode, na realidade, perpetuar situações discriminatórias e até exacerbá-las. Quando se trata de sistemas de aprendizagem automática, eles são “autodidatas”, o que significa que a sua programação original irá influenciar os seus resultados. Se as pessoas que desenvolvem
o programa incutirem nele um certo preconceito, este tomará decisões e encontrará soluções com base nele, situação que pode ser agravada com o tempo.
Adicionalmente, a “feminização e domesticação” da IA é um fenómeno que exemplifica de forma ideal os preconceitos de género presentes tanto em casa como no local de trabalho. Os homens são retratados como mais profissionais e focados na carreira, as suas vozes são consideradas mais autoritárias e assertivas e usadas para tarefas que envolvem o ensino e instrução – como é o caso do Watson da IBM, um robô utilizado no tratamento do cancro – enquanto as mulheres têm as suas vozes usadas para animar a maioria dos assistentes pessoais virtuais e robôs humanoides avançados – como Alexa e Siri, ou os robôs Sophia, Ameca, Jia Jia, e Nadina. O conceito de liderança é tacitamente entendido como incongruente com a feminilidade, mas naturalmente adequado com a masculinidade.
Será importante parar a demonização da luta feminista e tirar um momento para pensar sobre as escolhas civilizacionais que estamos a fazer. Será importante questionar as razões daqueles que tanto berram "ideologia de género" e tirar partido da nossa liberdade de pensamento. Será importante refletir sobre se o nosso entusiasmo coletivo por um futuro digital e pelo progresso da tecnologia de formas criativas e inovadoras nos impede de pensar para além das verdadeiras implicações deste avanço. E é igualmente importante responsabilizar a classe política pelas suas promessas, não deixando que que os direitos fundamentais - pedra angular da Democracia e da nossa Liberdade - sejam atacados em nome de interesses económicos de entidades indefinidas e promessas inconcretas.
- “Global Gender Gap Report 2022”, 13 de julho, 2022, consultado a 8 de março, 2024, https://www.weforum.org/publications/global-gender-gap-report-2022/ ↩︎
- Kaamil Ahmed, “No equality for working women in any country in the world, study reveals”, The Guardian, 5 de março, 2024, consultado a 8 de março, 2024, https://www.theguardian.com/global-development/2024/mar/05/no-equality-for-working-women-in-any-country-in-the-world-study-reveals-world-bank-gender-gap. ↩︎
- Does Artificial Intelligence advance gender equality?”, consultado a 8 de março, 2024, https://www.unesco.org/en/articles/does-artificial-intelligence-advance-gender-equality. ↩︎
- “Does Artificial Intelligence advance gender equality?”, consultado a 8 de março, 2024, https://www.unesco.org/en/articles/does-artificial-intelligence-advance-gender-equality. ↩︎
- Sobre a Ana Cardoso -
Jurista, especializada em Direito da União Europeia. Licenciada em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade do Porto. Mestre em Direito da União Europeia (MDUE) da Escola de Direito da Universidade do Minho, tendo sido distinguida com o Prémio de Mérito de Melhor Dissertação do MDUE. Continua a trabalhar em diversas iniciativas desta instituição, nomeadamente como membro da equipa editorial da revista "UNIO - EU Law Journal".