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Luísa Campos e Maíra Ribeiro (“Arte e olhar”): o início de uma forma de chegar

Coloquemos os dedos indicador e médio juntos, dobrando os outros, com a palma da mão…

Texto de Raquel Rodrigues

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Coloquemos os dedos indicador e médio juntos, dobrando os outros, com a palma da mão virada para dentro, e desenhemos no ar a configuração “u”.

Seguidamente, dispomos uma mão em forma de “v”, com a palma virada para dentro, iniciando um movimento, junto do olho do mesmo lado, de afastamento na direcção do objecto.

Dissemos "arte" e "olhar", em Língua Gestual Portuguesa.

O projecto “Arte e olhar — promoção da inclusão surdos/ouvintes através do teatro”, promovido pela Academia de Teatro Tin.Bra, foi um dos 16 vencedores da 1ª edição do PARTIS & Art for Change, uma iniciativa da Fundação Calouste Gulbenkian e a Fundação ”la Caixa”, que se destina a apoiar, no valor de 1,5 milhões de euros, as propostas que visam trabalhar a integração e a construção de relações sociais mais saudáveis, isto é, mais justas, solidárias e coesas, a partir da expressão artística.

A “arte” será a do teatro e o “olhar”, o que procura outro. Este projecto pretende tecer encontros, em contexto escolar, entre estudantes surdos/as e ouvintes, com idades entre os 15 e os 18, do Agrupamento D. Maria II, em Braga, uma instituição de ensino de referência bilingue. Talvez a escola, para muitos e muitas, seja o primeiro contacto com um mundo dividido, com a segregação, cujo problema tem que ver com a comunicação, que permite o conhecimento do outro e da outra, no seio da experiência de relação. Este projecto propõe-se trabalhar, precisamente, a comunicação, num dos seus sentidos mais primários, o da língua. Porém, muitas pessoas começam a sentir-se estrangeiras na própria raiz, a casa. “A maior parte das crianças surdas são filhas de casais ouvintes e que tardam, e, muitas vezes, rejeitam, a língua gestual. A própria família passa a ser um espaço onde a inclusão e a comunicação não se dão.” Este abismo é acentuado pela escola. Em Portugal, existem dezassete agrupamentos de escolas de ensino bilingue, cuja maioria não compreende o pré-escolar, o ensino básico e o secundário, simultaneamente, onde mais de 500 alunos surdos têm aulas em Língua Gestual Portuguesa (LGP). “O que verificamos é que, ao fim de vinte e muitos anos, mesmo dentro do nosso agrupamento, surdos e ouvintes têm pequenos momentos de interacção, mas não comunicam de forma fluída”, refere Luísa Campos, responsável pela área social e coordenadora do Departamento de Educação Especial.

Rede de Escolas de Referência para a Educação Bilingue. Fonte: Direcção-Geral da Educação

A Associação Tin.Bra – Academia de Teatro tem desenvolvido projectos de intervenção social, com diversos públicos em situação de fragilidade e marginalidade, mas será a primeira vez que trabalhará, especificamente, nesta dificuldade de comunicação.  “Considero que o teatro é uma das artes mais completas, porque consegue abraçar todas as outras, a plástica, a música, entre outras, e estabelece um outro tipo de comunicação, que valoriza mais o corpo, na sua totalidade. Não somos, simplesmente, emissores vocais. Não temos, simplesmente, só um aparelho, só um órgão que comunica. Temos um corpo comunicante e, para os surdos, as mãos, o rosto, são ferramentas fundamentais, mas o teatro vai permitir que esta comunicação seja holística e envolva todos os processos que facilitam e que criam pontes. Acreditamos, então, que seria uma ferramenta onde poderíamos colocar todos em pé de igualdade nesta busca de uma nova comunicação”, explica Maíra Ribeiro, directora artística.

A aplicação terá início em Setembro de 2021 e dividir-se-á em três fases. Na primeira “pretende-se identificar as principais problemáticas de comunicação no quotidiano sociocultural entre alunos surdos e ouvintes, envolvendo os participantes divididos em três grupos focais: o primeiro grupo será constituído por professores de LGP, de Educação Especial, intérpretes, terapeutas, psicólogos, docentes e assistentes operacionais; o segundo grupo focal será constituído por alunos surdos e ouvintes do 3º ciclo e do secundário; o terceiro grupo será constituído por pais e familiares dos alunos ouvintes e surdos”, lemos no documento de apresentação do “Arte e Olhar”. “A ideia será, a partir dos problemas reais, que as pessoas envolvidas nos grupos focais lançarem para o debate, perceber onde é que temos de intervir, o que é que temos de mostrar e de fazer para melhorar esta comunicação”, apresenta Luísa Campos.

A segunda, a partir dos resultados recolhidos, centrar-se-á na “elaboração colectiva de um texto dramático bilingue (guião do espectáculo) com o envolvimento de actores profissionais que, junto dos alunos surdos e ouvintes, irão construir o objecto artístico através da metodologia de brainstorming”, “uma ferramenta democrática, livre e aberta, que não oferece julgamento daquilo que está a ser contribuído”, esclarece a directora artística. Os participantes ouvintes terão formação em LGP e espera-se que, desta forma, os ensaios possam ser lugares-laboratórios de liberdade, porque, citando Luísa, “as línguas abrem caminhos”, que serão guardados para mais longe serem lançados, através de gravações em vídeo para um documentário, realizado por um cineasta surdo. Estas recolherão, também, a construção e apresentação do espectáculo, a terceira fase, que, no dia 2 de Junho de 2023, será apresentado, no Theatro Circo. Com estas imagens em movimento, “mais do que o produto, queremos que o próprio processo seja um legado e, portanto, vamos registá-lo”, através da lente de um realizador surdo, que trabalha no GestoFilmes Studios, um estúdio de cinema, independente, cuja missão passa, precisamente, pela partilha entre a comunidade surda e a ouvinte.

Estes vinte e quatro meses desejam ampliar-se, também, por via da investigação, tendo estabelecido uma parceria com o InEd – Centro de Investigação e Inovação em Educação na Escola Superior de Educação do Politécnico do Porto, “para que, amanhã, uma outra associação de teatro ou outro agrupamento de referência, que queiram fazer esse projecto, tenham ferramentas, um exemplo, um modelo do que que foi feito aqui”, nota Maíra.

A Associação de Surdos do Porto será a outra parceira. Apesar de ainda faltar algum tempo para o início do projecto, este já tem lugar no pensamento, nas conversas e nas agendas dos envolvidos e das envolvidas, porque as margens marcam o tempo das urgências. “Acho que nenhuma estrutura educativa está ainda cem por cento preparada para trabalhar a diversidade. Não está. Fomos, durante séculos, regidos por uma normalidade. Pessoas com deficiência eram, inclusive, exterminadas ou isoladas em campos. Portanto, é um processo moroso. Se está melhor do que no passado? Sem dúvida, mas a passos de tartaruga. Porém, a tartaruga venceu a lebre. Enquanto que, até ao secundário, há escolas de referência, como é o caso do Agrupamento de Escolas D. Maria II, quais são as universidades de referência? Quais são as universidades que estão preparadas para a comunidade surda, por exemplo? Não existem,” constata Maíra. Luísa acrescenta que a falta de legislação para a inclusão de estudantes não se verifica apenas no ensino superior, mas, também, no profissional.

Ambas sentem que o sistema educativo está a reconhecer-se como um lugar de formação, no sentido mais amplo, o que envolve uma intervenção mais plena do corpo, e que integrará, gradualmente, a potencialidade social da expressão artística. Todavia, este movimento é tão lento e disperso, que cria algum intervalo de silêncio, antes de uma previsão. “Portugal, em 1992, recebeu o primeiro Congresso Mundial de Teatro na Educação. De lá para cá, pouco evoluiu, mesmo quando o Ministério instituiu as verbas para os blocos das actividades de enriquecimento curricular, antes chamadas “extracurriculares”, que nem currículo eram. Só para ter um exemplo, se uma escola escolhesse inglês, educação física ou música, por exemplo, recebia um valor monetário. Mas se, nesse pacote, resolvesse escolher expressão dramática, o valor era menor. Ao que é que isto levou? Levou a que muitas não escolhessem expressão dramática. Depois, a formação dos profissionais... Quem é que pode dar as aulas de artes performativas? Qualquer um. Isto cria muitas lacunas no ensino. Mas, agora, fazendo uma análise positiva, digamos assim, cada vez mais caminhamos para uma reflexão de que só o cognitivo, sem o trabalho do emocional, vai ter consequências, ou já tem consequências, na formação do cidadão, porque a escola é um espaço de cidadania. Portugal está a caminhar muito devagar com essa questão da introdução das artes no currículo, porque é no currículo que têm de estar, na formação do cidadão”, adverte Maíra.

“Separar o cognitivo do resto, é artificial, porque nós somos um todo. Se não cuidarmos de todos os aspectos do desenvolvimento da pessoa, do ser humano, não iremos construir, de certeza, pessoas que vão ser felizes, saudáveis física e emocionalmente. Currículo é tudo o que é ensinado na sala de aula e tudo o que acontece nos corredores, nos recreios, porque a criança, ou o jovem, não desliga a sua capacidade de aprendizagem, quando sai da sala de aula. Tudo é aprendizagem e umas são melhores, mais positivas do que outras. Infelizmente, às vezes, também se aprende a excluir, a não ser tão honesto, sincero, congruente e capaz de respeitar”, conclui Luísa.

Para que os gestos falem, comecemos a olhar o silêncio, a cuidar do silêncio, trazendo-o para o centro de uma sociedade que não descansa enquanto alguém faltar.

Texto de Raquel Botelho Rodrigues

Fotografia da cortesia da Tin.Bra

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