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Machismo disfarçado de simpatia e respeito

Nesta sociedade em que vivemos, há dois tipos grandes de machismo: o descarado e o…

Opinião de Clara Não

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Nesta sociedade em que vivemos, há dois tipos grandes de machismo: o descarado e o disfarçado.

Exemplo 1: machismo descarado

A existência de regulamentos de andebol que declaram que as jogadoras são obrigadas a jogar sempre de biquíni e estão proibidas que a parte de baixo do equipamento cubra mais de 10 centímetros da parte superior das pernas para que haja "atratividade" e mais patrocínios.* A equipa norueguesa contestou. As jogadoras apareceram vestidas com calções, o que acabou com ameaças. Isto é pura objectificação sexual.

No relato desta notícia, aconteceu ainda algo que transparece a desigualdade de género no desporto: o maior jornal de desporto de Portugal reportou a notícia como sendo uma equipa de voleibol, quando é de andebol. Este facto pode parecer insignificante, mas não é: prova a pouca importância que se dá (que nem merece uma mera pesquisa de corroboração) e a desigualdade de tratamento existente referente a equipas femininas de desporto. Quando dão visibilidade, enganam-se na modalidade. Que bonito. A foto tem areia? Elas usam biquíni? É voleibol. Pois é, mas não repararam que a foto também tem uma baliza… Enfim, espero que tenha sido um erro inocente, mas não deixa de ter um travo a machismo inconsciente.

Exemplo 2: machismo disfarçado

Como escreve Emily Pine, aqui traduzido livremente, porque eu sou uma libertina:

“Normalmente, os comentários sexistas no trabalho não envolvem referências a genocídio, o que faz com que seja mais fácil de viver com eles, mas também de nem sequer reparar neles. Já perdi a conta ao número de vezes em que homens, quer mais velhos quer mais novos que eu, me disseram que eu pareço jovem. Eles dizem-no como se fosse um elogio, mas não é um elogio. (…) ao informarem-me de que pareço jovem, ou de que não percebo porque sou inocente, ou perguntarem-me se sou estudante, quando claramente sou professora [lecturer] titular/efetiva, estes homens tiram-me mais de uma década em experiência profissional e especialização. Este dito elogio é, na verdade, uma despromoção instantânea.”

Mais adiante, Emily relata uma das suas experiências como palestrante, numa conferência que realizou sobre violação.

“Falei das dificuldades que as mulheres têm em falar publicamente sobre violação. (…) Depois de eu terminar, houve um breve silêncio. (…)

O primeiro comentário veio de um homem, que previamente me tinha sido apresentado como sendo o Presidente do Corpo Docente da Faculdade. Começou devagar, abanou a cabeça e (…) disse “Para mim é difícil de conciliar a sua aparência e a sua forma de tratar o assunto da conferência. Quero dizer, a Emily é… não quero usar a palavra “gira” [cute], mas… “ (…) Embora ele tenha prosseguido fazendo uma questão, (…) o comentário dele ditou o tom da discussão que se seguiu. (…) Fui julgada pela minha aparência e não pelo conteúdo do meu discurso.”

De “Notes do Self”, páginas 185, 186.

__

Analisando o segundo exemplo, poderemos ver facilmente as repercussões do uso da aparência jovem como um elogio em contextos profissionais. Chamo a este machismo disfarçado “Juventude como elogio de desproporção intelectual.” A meu ver, usar tal como elogio é sempre problemático, já que estamos a pôr a juventude como o elogio físico supremo que se pode dar a uma mulher. (Claro que depois as temos a fazer lifting em tudo o que é parte do corpo. Perceba-se que não sou contra intervenções estéticas de todo, mas é importante percebermos, quando as estamos a considerar, as razões pelas quais estamos a pensar fazê-las.) Quantas vezes responderam, mulheres, a um “Pareces mais nova!” com “Obrigada!”? Também eu, até reparar no que implica aceitar isso como elogio.

Além disso, reparem como, depois de ouvir uma conferência séria sobre um assunto sério, a primeira coisa que o homem fez foi comentar a aparência da palestrante, ao invés do conteúdo da palestra acabada de dar. Na verdade, situações semelhantes a esta acontecem muitas vezes no dia-a-dia corriqueiro. Reparem neste exemplo de diálogos:

— Gostaste da exposição?
— Sim, gosto muito da artista.
— Também eu, é uma querida.

— A conferência foi muito interessante.
— Pois foi, adorei o vestido dela.

Chamo a este machismo disfarçado “Aquela profissional é só uma querida”. Em ambos os exemplos, o que está a ser discutido não é o conteúdo da apresentação das mulheres, mas o facto de elas serem queridas ou se vestirem bem. O aspecto profissional foi totalmente descredibilizado no espaço de segundos. Mais uma vez, o que à primeira vista pode parecer um elogio simpático é um — tan tan taaaan — machismo disfarçado! Estes exemplos são tão executados por homens como por mulheres.

Vamos agora passar para o machismo disfarçado supremo da óbvia fragilidade feminina *inserir revirar de olhos*: o “Coitadinha não aguenta um foda-se”. Este é o típico acto de um homem pedir desculpa quando diz um palavrão, mas só às mulheres presentes. Este acto, que muitas vezes é tido como um acto de respeito, trata-se de uma condescendência brutal, tratando as mulheres como frágeis, só por serem mulheres. Indiretamente, está a dizer que as mulheres não dizem, como quem diz “não devem dizer”, palavrões. Pois bem, meus caros, se é certo ou errado dizer palavrões, não sou eu nem ninguém que decide — mais depressa diria que podemos abordar se é válido ou inválido conforme o contexto —, mas se é certo ou errado, é-lo para todas as pessoas, independentemente do seu género. Fico possessa com isto, juro! Cada vez que ouço esta barbaridade — que já ouvi de homens jovens e mais velhos, neste último caso associado a um “menina” depois do “desculpe” — penso: “Caralho, vou tatuar um ‘foda-se’ na testa.” Óbvio que não vou, mas serve isto como ilustração à minha indignação.

Para acabar a minha lista de irritações de hoje, apresento os machismos disfarçados relacionados entre si “Ela não vai perceber o que digo” e “Vou instruir a rapariga”. Ambos têm como premissa: a mulher é uma ignorante nesta matéria em que eu sou especialista.

Imaginemos o seguinte cenário: dois homens e uma mulher estão à conversa. O tema é composição musical. Um dos homens muito sabido na matéria, que não conhece com profundidade nem o outro homem nem a mulher, está a debitar informação sobre o tema. Olha para o segundo homem ao falar, mas nunca para a mulher. Ignora os seus comentários e ainda mais a sua presença, sem saber o contexto cultural de nenhum dos dois.
Automaticamente acha que ela não vai saber do assunto, mas que o homem o vai entender.

Neste caso de circunstância social, a mulher é especializada em teoria musical, enquanto o homem, embora se interesse pelo assunto, não tem conhecimento sobre composição musical. O que vemos aqui, neste exemplo específico, acontece não só em circunstâncias meramente sociais, mas também em escritórios, ou noutros contextos profissionais, por todo o mundo: mulheres que foram contratadas, e têm o emprego que têm, por terem capacidades para executar o seu trabalho, mas que têm as suas competências postas em causa, a sua voz silenciada, a sua aparência julgada antes do conteúdo do seu discurso, pelo mero motivo de serem mulheres. Quando os homens ignoram assim a participação de uma mulher na conversa, estão a anular a sua presença, fazendo dela figurante da acção que só deve ser protagonizada só pelos homens. Trata-se da versão século XXI das mulheres que devem ficar a conversar na sala de chá/cozinha, enquanto os homens falam de negócios na sala de estar. Poupai-nos, senhores.

Interligado com este machismo disfarçado, temos, então, o “Vou instruir a rapariga”, comummente conhecido como Mansplaining. Esta altruísta prática *inserir revirar de olhos*, divide-se em duas máximas: “obviamente esta gaja não sabe nada disto” e “vou explicar-lhe para lhe mostrar como sou pro”. Ora, deixo aqui algumas questões de reflexão para homens que estejam a pensar explicar algo a alguém:

— Tens a certeza que ela não sabe o que é?
— Ela pediu-te para lhe explicares?
— É necessário para a conversa que expliques alguma coisa?
Se respondeste “não” a alguma, está masé caladinho.

Uma vez um rapaz começou a explicar-me como se faziam graffitis, do nada! Inclusive, procedeu a uma demonstração com mímica e simulação aérea numa parede. Na altura fiquei só muito parva a olhar para ele e a pensar: “Isto está-me mesmo a acontecer?” e a imaginar no canto inferior esquerdo da minha visão um “fig.1. Mansplaining".

Com tudo isto, não é meu intuito condenar as pessoas que praticam este machismo disfarçado, mas antes a chamar à atenção para a promoção destas dinâmicas sociais machistas. Até porque, muitas vezes, estas são protagonizadas por boas pessoas que ainda não repararam que o fizeram/fazem. Quando repararmos na presença destes machismos, devemos questionar a pessoa, sem a atacar, para a tornar consciente (todo um novo tema para outra crónica).

De facto, se estivermos mais atentas, seremos pessoas melhores para toda a gente, mais empáticas, mais defensoras de nós mesmas. Somos todas pessoas diferentes, mas devemos ter o mesmo tratamento na base do respeito, independentemente do nosso género, orientação sexual, cor de pele, capacidade económica, e tendo em conta o nosso contexto cultural, nacionalidade e religião.

Concluindo, este último parágrafo todo da paz é muito bonito e verdadeiro, mas a maior parte das vezes em que assisto a estes machismos, só me apetece dizer “Vai-te foder”. Ai, peço desculpa aos homens presentes por esta minha ousadia de linguagem. LOL, não peço nada. Aguentai-vos.

*fonte: https://www.jn.pt/desporto/norueguesas-ameacadas-com-expulsao-de-torneio-pornao-quererem-jogar-de-biquini-13951147.html

*Texto escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico

-Sobre Clara Não-

Clara Não é ilustradora e vive no Porto. Licenciada em Design de Comunicação, pela Faculdade de Belas Artes do Porto, e fez Erasmus na Willem de Kooning Academie, em Roterdão, onde focou os seus estudos em Ilustração e Escrita Criativa. Mais tarde, tornou-se mestre em Desenho e Técnicas de Impressão, onde estudou a relação fabular entre Desenho e Escrita. Destaca-se pela irreverência e ironia nas ilustrações, onde reivindica a igualdade, trata tabus da sociedade e explora experiências pessoais.  Em 2019, lançou o seu primeiro livro, editado pela Ideias de Ler, intitulado Miga, esquece lá isso! — Como transformar problemas em risadas de amor-próprio. Nas horas vagas, canta Britney.

Texto de Clara Não
Fotografia de Another Angelo

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